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Como enfrentar a vida após a morte de quem se ama?

Às vésperas de completar um ano da morte do jornalista Gilberto Dimenstein, a jornalista Anna Penido reflete sobre a vida após o luto

Anna e Gilberto

Anna com Gilberto, filhos e irmãos: livro traz reflexões sobre a existência humana | Foto: arquivo pessoal

Quando Anna Penido perdeu o marido para o câncer há um ano, a pandemia de covid-19 tinha levado 30 mil vidas no país. Diferentemente do que ocorreu com as pessoas próximas de mais de 400 mil vítimas da covid desde então, ela pôde conviver com o jornalista Gilberto Dimenstein até o fim e teve dez meses para se despedir.

“Não poder estar ao lado da pessoa durante os últimos momentos e não poder se despedir é a parte mais violenta dessa pandemia”, comenta Anna, que relatou a experiência da perda no livro que escreveu junto com o marido morto aos 63 anos.

O livro “Os últimos melhores dias da minha vida” pode ser um alento no luto de quem perdeu entes queridos na pandemia. A obra descreve como o casal enfrentou a vida desde a descoberta de um câncer no pâncreas até a morte do jornalista no dia 29 de maio.

São reflexões sobre o sentido da existência humana, o valor da vida e a importância do convívio com quem se ama enquanto isso é possível. E sobre os singelos prazeres que a consciência da finitude da vida pode revelar.

Na entrevista a seguir ela conta como enfrentar a dor da perda de uma pessoa que compartilha os mesmos sonhos, ideais e rotinas. E revela o que costuma fazer para seguir em frente e honrar a memória do amor perdido.

Capa do livro e Anna com Gilberto: reflexões sobre a existência humana | Fotos: divulgação

O Especialista – Como enfrentar o luto e seguir em frente após a morte de quem amamos?

Anna Penido – As pessoas me perguntam se existe vida após o luto. A gente precisa reinventar a vida depois da perda, não dá mais para continuar aquela vida que a gente tinha antes. Principalmente se você tem uma relação tão próxima com a pessoa que se foi. É uma vida compartilhada, sonhos, hábitos, e a gente tem que reinventar tudo isso. No caso do Gilberto, ele aproveitou a proximidade da finitude para se reconciliar com tudo o que há de mais especial, bonito e essencial em relação à vida. No meu caso, comecei a achar que a vida é uma dádiva, um privilégio. Ter essa oportunidade de experimentar o que a nossa existência é capaz de nos oferecer.

Mesmo quando vivemos uma crise como a atual, que mina nossa vitalidade e nossas esperanças, temos ao mesmo tempo a oportunidade de transformar, ressignificar, acolher e cuidar das pessoas. E de inventar outro mundo diante das limitações do atual. Então eu passei a honrar muito a ideia de estar viva. Muita gente perde o sentido da vida quando perde alguém que ama. O Gilberto me deixou muito nutrida de propósitos e de sonhos, e eu carrego isso para honrar o privilégio de estar viva.

Os sonhos de quem parte podem ajudar quem fica?

Todo mundo que se vai deixa algo. Essa busca de um legado nos pereniza. E deixa algo também dentro daqueles com quem teve a oportunidade de conviver. Hoje eu procuro sentir a presença do Gilberto naquilo que ele deixou dentro de mim. São os sonhos, o afeto, o amor pela família dele, os compromissos que tínhamos em relação a causas e projetos sociais, os aprendizados. Nos últimos meses foram muitos os aprendizados. Então, ele está o tempo todo dialogando comigo. Me pego falando algo que ele falaria, fazendo algo que ele faria, quase como se estivéssemos amalgamados numa pessoa só. Tínhamos estilos diferentes, ele todo caótico e eu organizada, ele disperso e eu focada, ele mais ousado, mas todas essas características dele acabaram virando superação e enriquecimento de muitas das coisas que para mim eram mais difíceis e limitadoras. Acabei crescendo muito com essa experiência

Em tempos de pandemia, sobreviver é uma forma de honrar a pessoa que perdemos?

O Gilberto cita no livro uma passagem do Talmude, o livro que registra os ensinamentos passados oralmente por Moisés aos sábios judeus: viver bem é a melhor vingança. Na situação política e econômica, e nas suas condições, a maior vingança não é necessariamente se colocar contra os seus opositores, mas não deixar que essas coisas te impeçam de seguir atrás dos seu sonhos, buscar sua felicidade e cuidar dos outros. Esse é um ensinamento muito importante nesse momento em que as pessoas perdem seus entes por algo que poderia ter sido evitado. Se houvesse preocupação com as políticas de saúde pública, se as pessoas cuidassem umas das outras, certamente não teríamos esse número tão grande de mortes. Então, nossa maior vingança na luta contra a covid e a mortandade é a gente cuidar uns dos outros e da gente mesmo. E identificar o que podemos fazer para vencer todas as crises que estão vindo dessa situação de pandemia atual.

Na prática, o que você sugere para quem está sofrendo a perda de alguém que ama nessa pandemia?

Vou falar sobre o que me ajuda, não sei se serve para todo mundo. Primeiro, para mim, a palavra cura. Digo que palavra cura mais que pomada cicatrizante. Poder escrever o livro junto com o Gilberto, poder falar sobre ele, tudo isso me consola. Depois, ter projetos de médio e longo prazo que me deem forças para levantar todos os dias. Tenho procurado fazer atividades físicas, porque quando a gente fica muito apático, do ponto de vista emocional, a atividade física é uma fonte de energia. E, obviamente, estar cercado de pessoas que a gente gosta e que também gostavam de quem se foi. Porque a gente quer ter a possibilidade de falar sobre o que a gente sente. E como a morte é algo que incomoda muito, gera constrangimentos e desconfortos, nem todo mundo se abre a essa possibilidade de conversa que é tão importante para quem fica. E cercar-se de pessoas que gostam de falar de coisas que a gente viveu e tenham também recordações da pessoa, isso faz com que eu possa evocá-lo em muitos momentos, o que para mim não é uma tristeza, mas uma alegria. Sentir a presença dele, ainda que nas conversas que a gente tem, isso ajuda muito. Mas, acho que a coisa mais importante de todas é a gente respeitar o que a gente vai sentindo. Não querer atropelar processos e nem seguir receitas de outros. Se para uns é doloroso ter as fotos da pessoa na casa, para outros é reconfortante. Para alguns, leva mais tempo sair do estado de letargia. Alguns se atordoam com as lembranças, outros quere viver essa dor mais profundamente. Respeitar o que a gente sente acho que é a melhor receita.

Depois da edição e divulgação do livro “Os últimos melhores dias da minha vida”, quais os próximos desafios?

Fui convidada para criar e coordenar uma nova organização social voltada a formar lideranças educacionais para que promovam aprendizagem e desenvolvimento integral com sentido e equidade. Um dos maiores desafios da educação brasileira é a questão da desigualdade, agora acirrada pela pandemia. Temos muitos estudantes com acesso a métodos, materiais e processos educativos, e que continuam aprendendo apesar do fechamento das escolas. Outros milhares ficaram no vazio. Não que não existisse desigualdade, ao contrário, é um dos mais graves problemas do Brasil há muito tempo, mas tornou-se mais agudo por causa da pandemia. O maior propósito dessa nova organização é tentar reduzir essas dificuldades que fazem com que muitos estudantes fiquem pelo meio do caminho ou concluam a educação básica sem terem aprendido o que era direito deles. É um trabalho imenso, mas vamos ter um trabalho forte de pesquisa e de articulação para encontrar novas soluções para esse problema tão grave e antigo.

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