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Joaquim Levy

A exuberância da arrecadação federal veio para ficar?

A arrecadação federal vem crescendo com força em 2021, mas a tendência pode se reverter nos póximos meses à medida em que a economia volta ao normal

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Um dos principais fatores para o aumento da arrecadação foi a disparada do setor de bens durante a pandemia | Foto: Getty Images

A arrecadação federal vem crescendo com força em 2021. Em setembro, a arrecadação de impostos e contribuições excluindo a previdenciária cresceu 14% acima da inflação do IPCA em relação setembro de 2020. A arrecadação de janeiro a setembro a preços de setembro de 2021 está 25% acima daquela dos 9 primeiros meses de 2020. Esse crescimento não é um fenômeno estatístico decorrente da queda da arrecadação em 2020. A arrecadação também cresceu acima da inflação em relação a 2019.

O que estaria causando esse crescimento, e quão significativa ou duradoura será essa boa fase? Há indicações de que o crescimento da arrecadação acima da inflação (IPCA) é ligado a diferenças na carga tributária de diferentes setores da economia e ao aumento de demanda por bens durante a pandemia. E que ele não é tão grande quando medido em relação ao PIB nominal, e pode ser revertido nos próximos meses, com a retomada dos serviços e a acomodação da economia como um todo.

Um dos principais fatores para o aumento da arrecadação nos últimos meses foi a disparada do consumo de bens produzidos pela indústria durante a pandemia. Com o fechamento do comércio (“lockdown”), o consumidor teve dificuldade de consumir serviços, como restaurantes e outras atividades que exigem proximidade física, e direcionou seu poder de compra para bens.  Esse direcionamento foi turbinado pela grande injeção de dinheiro público na economia para enfrentar o lockdown (perto de meio trilhão de reais). O boom de consumo de produtos industriais acabou pressionando o preço das matérias primas e impulsionando o lucro das empresas.

Esses movimentos não são únicos ao Brasil, refletindo o que aconteceu na maioria das economias avançadas, em que as políticas keynesianas também foram empregadas com grande vigor. Esses movimentos se traduziram no aumento do preço das matérias primas aqui e no resto do mundo.  No Brasil, esse aumento foi incrementado pelo enfraquecimento do real, resultando na subida acelerada do preço das comodities industriais em reais, com o IC-Br de metálicos subindo 100% e IC-Br energia 87% nos 24 meses até setembro último.

Normalmente, o aumento do preço das commodities impacta mais o preço no atacado do que no varejo. No Brasil, o preço dos produtos industriais no atacado (IPA-manufaturados) cresceu 51% nos últimos dois anos, enquanto o preço ao consumidor dos bens industriais (Núcleo IPCA-industriais) cresceu 12%, mesma taxa da subida do IPCA-duráveis que mede o preço de bens como geladeira, automóvel, entre outros. O IPCA completo cresceu 13,7% no período.

Por que os fatores acima são importantes? Porque o dinamismo da arrecadação federal está concentrado nos tributos mais sensíveis ao aumento de consumo de bens, especialmente industriais, assim como do impulso que esse consumo deu na lucratividade das empresas. 

A arrecadação do Imposto de Importação (II) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) nos 9 primeiros meses do ano corrente subiu respectivamente em 30% e 14% acima da inflação em relação ao mesmo período de 2019. A do IPI-Importação cresceu 48%.  O PIS-Cofins ficou no “zero a zero” no mesmo período, porque as empresas estão usando créditos criados pela decisão do STF de retirar o ICMS da base de cálculo daquelas contribuições para economizar no pagamento dos seus tributos devidos, o que representa uma perda de arrecadação de dezenas de bilhões de reais nesse e nos próximos anos.  A arrecadação do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ), por outro lado, subiu 31% acima da inflação e a da CSLL, cuja base de cálculo é parecida com a do IRPJ, cresceu 23%, também graças ao surto de atividade proporcionado pelo impulso fiscal e monetário de 2020 e o boom das exportações com a subida das matérias primas.

Só as contribuições previdenciárias têm perdido da inflação (variação de -2%) apesar do aparente crescimento do emprego formal, segundo o Cadastro Geral do Emprego e Desemprego (CAGED). 

Esses resultados podem surpreender à primeira vista, mas são devidos em grande parte a efeitos de preço e de composição do consumo na esteira da Covid-19. Eles não implicam em uma mudança estrutural da economia brasileira ou da arrecadação federal. Eles têm a ver com um aumento maior dos preços no atacado do que dos preços ao consumidor (usados pela Receita Federal para deflacionar a arrecadação), e com a maior tributação da produção industrial do que do setor de serviços.  O patamar atual da arrecadação não deve ser, portanto, muito persistente, especialmente na medida em que a economia se acomodar em uma taxa de crescimento bastante moderada, com crescimento do PIB projetado para 2022 perto de 1%.

O efeito de composição, decorrente do setor industrial pagar IPI e II, e de as alíquotas do PIS-Cofins incidindo sobre bens ser maior do aquelas sobre serviços, pode ser ilustrado com um exemplo simples em que hipoteticamente o consumidor gasta originalmente 70% da sua renda em serviços e 30% em bens. Com a pandemia o consumidor muda também hipoteticamente o perfil da sua despesa, levando o preço do bem industrial a subir 20%, e gastando 45% da sua renda em bens. Nesse exemplo, a despesa fica igual, a inflação sobre 6%, e o consumo contrai em termos reais, mas a arrecadação aumenta em 30% (22% acima da inflação).

O efeito composição também aparece de outra forma na própria arrecadação dos bens industriais, quando a inflação das matérias primas é grande. Isso porque as diferentes etapas desde a obtenção da matéria prima até o produto chegar na prateleira para o consumidor também são tributadas de maneira diferente, podendo resultar na arrecadação crescer mais do que o preço do bem industrial. Com uma tributação maior sobre as etapas de extração da matéria prima e produção do bem do que sobre a etapa de sua distribuição, a arrecadação vai subir bem mais do que o preço final do bem industrializado se o custo de produção (por exemplo, IPA-manufaturados) subir mais do que o custo da distribuição.

Um exemplo fácil para ilustrar o impacto da subida do IPA sobre a arrecadação considera um bem cujo preço final era originalmente composto por 1/3 de custo de produção e 2/3 de custo de distribuição. Se o preço no atacado subir 25% e o custo no varejo subir apenas 4%, podemos ter uma variação do custo final do bem (e.g., IPCA-duráveis) subindo 11%, enquanto a arrecadação do setor dispara em quase 60 %. Supondo um IPCA de 13%, o preço do bem durável deflacionado pelo IPCA pode cair, enquanto a arrecadação sobe quase 50% acima da inflação, o que é parecido com o que tem se observado olhando o IPA e o IPI, por exemplo.

O crescimento do IRPJ, por seu lado, reflete o salto das vendas a partir de meados de 2020 e abrange tanto os setores extrativos, como os industriais e o de varejo, já que as alíquotas nesse caso são as mesmas para todos os setores.  A previsão de analistas é de que 80% das empresas listadas terão aumento de lucro no terceiro trimestre de 2021 em relação a 2020, o qual não foi um ano uniformemente ruim para as empresas.  A lucratividade no terceiro trimestre cresceu nos setores de commodities (Vale, com aumento de 29% no lucro) e metais (Gerdau, +600%), energia e frigoríficos (Marfrig, + 148%), atingindo empresas industriais (Weg, +26%) e mesmo algumas que perderam inicialmente com o lockdown (Anbev, +57%).  Segundo a Receita Federal[1], a arrecadação do IRPJ em setembro de 2021 no setor de metalurgia cresceu 536% (+R$ 658 milhões) em relação ao mesmo mês de 2020 e no comércio varejista 60% (+R$ 508 milhões). Essas cifras são excelentes, mas tenderão a ser menores na medida em que a atividade arrefecer nos próximos trimestres, especialmente se os custos, como de energia, continuarem a subir. 

Olhando para frente, vale observar a acomodação do preço do minério de ferro e de algumas commodities agrícolas e lembrar que o Banco Central do Brasil projeta um aumento da participação dos serviços na cesta de consumo dos brasileiros com a superação da pandemia, o que deslocará o consumo para setores da economia menos tributados. Esse deslocamento deverá aumentar o preço dos serviços, sendo compensado pela desinflação, ou mesmo deflação dos bens, inclusive manufaturados. Trata-se do fenômeno contrário ao ocorrido nos últimos 18 meses e forma um cenário, portanto, de desaceleração do IPCA e possível queda do IPA, com efeitos desfavoráveis para alguns impostos que têm crescido acima da inflação.

A arrecadação crescer acima do IPCA não deve, portanto, ser um fenômeno permanente, e sua implicação econômica tem sido limitada, já que a arrecadação total do governo central como proporção do PIB nominal não tem crescido significativamente.[2]  Ou seja, a necessidade de disciplina fiscal continua presente, até para se evitarem surpresas no resultado primário de 2022.


[1] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao/arrecadacao-2021/setembro2021/analise-mensal-set-2021.pdfA leitura

[2] https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO:41791


Joaquim Levy é diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados no Banco Safra. Ex-Ministro da Fazenda, Levy é engenheiro naval pela UFRJ, mestre pela FGV e PhD em economia pela Universidade de Chicago. Tendo sido CFO e Diretor Gerente do Banco Mundial e Vice-Presidente de Finanças do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ele foi Presidente do BNDES e Secretário do Tesouro Nacional do Brasil, além de ter trabalhado no mercado financeiro, tendo sido responsável por uma das principais gestoras de ativos do país.

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