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Joaquim Levy

O biogás é parte de Glasgow?

Investimentos privados no saneamento e tratamento do lixo podem trazer bons retornos para investidores e reduzir as emissões de metano associadas ao setor

biogás

Brasil tem tecnologia e mercado para ampliação da utilização do biogás como alternativa energética | Foto: Getty Images

Chega-se a Glasgow (o barranco verde, no idioma local…) sem clareza do que será possível alcançar nessa conferência do clima, dados os problemas domésticos de muitos de seus participantes e as divergências geopolíticas entre alguns deles. 

É improvável haver acordo para a redução acelerada das gigantescas emissões causadas pela queima do carvão, pois ela supre mais de 2/3 da eletricidade da China e da Índia.  Também será surpreendente se a promessa de fluxos de US$ 100 bilhões por ano feita pelas economias avançadas aos países em desenvolvimento vier a se realizar como desejado pelos últimos. 

Deve-se discutir as regras de aplicação do Artigo 6 do Acordo de Paris, levando o Brasil a lutar para que o valor do desmatamento evitado, reflorestamento, biocombustíveis e mesmo da energia renovável seja reconhecido internacionalmente e aceito na União Europeia, inclusive no seu mercado de carbono (ETS). Mas o resultado é incerto.  

Poderá haver também foco na descarbonização do aço e cimento, talvez com estímulo ao uso do gás natural em antecipação à eventual adoção do hidrogênio verde na siderurgia. Mas um alvo mais imediato deverão ser as emissões de metano, que têm um impacto no aquecimento atmosférico convencionalmente 28 vezes maior do que as do gás carbônico (CO2). 

Globalmente, as emissões fugitivas de metano oriundas da produção de petróleo e gás têm tido proeminência.  Elas ficaram famosas com as torneiras de cozinha que soltam labaredas onde a produção de óleo se dá pelo fracionamento da rocha (“fracking”), facilitando a fuga do metano associado. Excedendo 50 MtCO2eq por ano nos pequenos poços do Permiano nos EUA, emissões de metano também ocorrem em grandes instalações ao redor do mundo.

No Brasil, a Petrobras pretende reduzir as emissões de metano no segmento de P&D nos próximos 5 anos em 40% vis-à-vis 2015, e zerar o “flaring” até 2030, dentro do objetivo de reduzir em 1/3 as emissões totais do segmento, hoje perto de 20MtCO2/ano.

A discussão sobre metano poderá transbordar para as emissões entéricas dos bovinos e aquelas associadas aos dejetos animais—impactando o Brasil. O Itamaraty certamente está atento a essa possibilidade, para evitar sanções contra nossa pecuária, que anualmente emite 400MtCO2eq de metano.

A ambição de um bife carbono zero começa a se firmar no Brasil, e vai depender de se continuar progredindo no manejo de dejetos animais e de grandes melhoras no pasto (parte do programa ABC+ recém lançado). Essas melhoras, junto com complementos forrageiros, podem reduzir as emissões entéricas e aumentar o carbono orgânico no solo, além daquele nas árvores, caso acompanhadas do plantio comercial de árvores ou da liberação de terras para a regeneração dos vários biomas.  Muita pesquisa, métricas claras e medições precisas poderão justificar a ambição, trazendo reconhecimento internacional ao esforço.

O setor de saneamento e os efluentes industriais são outra grande fonte de metano no Brasil. Com o equivalente a 90MtCO2eq por ano, juntos eles emitem quase tanto quanto o setor de transporte de carga rodoviário (101MtCO2eq), segundo as Estimativas de Emissões do Observatório do Clima (SEEG). 

Quase um terço dessas emissões de metano vêm de aterros sanitários, um cerca de ¼ de esgotos domésticos e 20% de aterros controlados e lixões.  Emissões na produção de açúcar e álcool estão perto de 15MtCO2, o dobro do emitido na produção de celulose, e já começam a ser evitadas com o aproveitamento do biogás da vinhaça. 

Em todos esses setores é possível diminuir emissões, especialmente em havendo um mercado regulado de carbono no Brasil.

O setor de saneamento e resíduos sólidos responde por ¾ do biogás para fins energéticos produzidos hoje no país, segundo o CIBiogás. Diversos aterros sanitários já capturam o biogás para produzir energia elétrica, em contratos bilaterais e com vantagens da geração distribuída. Em várias localidades, a energia é obtida diretamente pela incineração do lixo, como na usina de recuperação energética (URE) de Barueri que recentemente vendeu 12MW em um leilão de energia.

A ABBiogás projeta conservadoramente que 10TWh/ano possam vir a ser gerados pelo setor de saneamento. Apesar de representarem apenas 1,5% do atual consumo de eletricidade, eles seriam muito valiosos para a redução de GEEs. 

O preço do MWh de UREs nos recentes leilões de energia foi perto do dobro do da fonte eólica. Essa diferença pode ser reduzida se houver um mercado de carbono regulado, considerando que cada MWh produzido evita a emissão de 250m3 (125kg) de metano, equivalentes a 3,5tCO2. A tonelada de CO2 valorada em R$70 proporcionaria R$250/MWh de receita adicional às UREs, abrindo espaço para a atividade em carteiras de investimento diversificadas.

Em outros aterros, o biogás do lixo é purificado e vendido para a indústria, remunerando a captura dos GEEs. É o caso do aterro de Seropédica no Rio, que vende metano para uma siderúrgica próxima.

A demanda pelo aproveitamento do resíduo sólido deve aumentar com o fim dos lixões programado para 2024, e o biogás pode diminuir a conta de eletricidade das empresas de água e esgoto.  

A estabilidade macroeconômica permitindo, o afluxo de capital privado para o saneamento e tratamento do lixo pode trazer bons retornos para o investidor doméstico e estrangeiro, mudar os índices de desenvolvimento humano e, com políticas adequadas, reduzir em 90% as emissões de metano associadas ao setor.  É outro exemplo de como a integração de objetivos climáticos e um mercado de carbono podem ajudar no crescimento econômico e na melhora das condições de vida de todos nós.

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“Não há bálsamo em Gileade, ou médico lá?”. Nada de jeremiadas, mas espanta a aparente complacência com a provável diluição do investimento de 18 anos no Bolsa Família, avançando-se com mudanças pouco claras, que dificilmente irão fortalecer os objetivos do programa no longo prazo e trouxeram turbulência aos mercados financeiros. Com a MP 1061, o Bolsa Família acaba dia 7 de novembro próximo. 

  • Publicado originalmente no jornal Valor Econômico.


Joaquim Levy é diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados no Banco Safra. Ex-Ministro da Fazenda, Levy é engenheiro naval pela UFRJ, mestre pela FGV e PhD em economia pela Universidade de Chicago. Tendo sido CFO e Diretor Gerente do Banco Mundial e Vice-Presidente de Finanças do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ele foi Presidente do BNDES e Secretário do Tesouro Nacional do Brasil, além de ter trabalhado no mercado financeiro, tendo sido responsável por uma das principais gestoras de ativos do país.

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