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Laura Karpuska

Laura Karpuska

Distrações

Apesar de sabermos que a economia importa para a política, acredito que hoje é a política que importa mais para a economia

It’s the economics, stupid”. A famosa frase, cunhada em 1992 por James Carville, estrategista da campanha do democrata Bill Clinton contra o então presidente George H. W. Bush, sintetiza não apenas a campanha vencedora de Clinton – que ganhou tração ao explorar a recessão econômica do período Bush –, mas também a importância da conjuntura econômica para a reeleição de um presidente. Bush perdeu a reeleição e entrou para a história como um dos 9 presidentes – 10 se contarmos agora com Donald Trump – que não foram reeleitos entre os 46 dos Estados Unidos.

Apesar de sabermos que a economia importa para a política, acredito que hoje é a política que importa mais para a economia. O Brasil saiu da recessão de 2015/16 crescendo muito pouco – isso mesmo antes do choque negativo da covid-19. Se dependesse da pura performance econômica, acredito que o nível de aprovação do atual governo do presidente Jair Bolsonaro seria ainda menor. Há quem diga que o establishment econômico se esqueceu o que é viver tempos de vacas gordas e se contente com uma performance econômica pífia. Outros diriam que a agenda ideológica hoje é mais importante para uma grande parcela da população do que a agenda econômica. Há ainda os mais otimistas que acreditam ter nesse governo os representantes da luta contra a corrupção. Um otimismo difícil de ser mantido com os fatos. Seja qual for a vertente escolhida, o fato é que, hoje, no Brasil, parece que “it’s the politics, stupid”.

Neste contexto de maior importância da política, o foco absoluto na necessidade de reformas econômicas acaba não apenas por naturalizar o momento conturbado em que vivemos, como também dificulta que estas sejam bem-sucedidas. Explico-me. O Brasil precisa de reformas. Claro. O Estado brasileiro arrecada mal – de forma distorciva e regressiva, gasta mal e possui um maquinário ineficiente. Reformas tributárias, priorização de gastos e uma reforma administrativa seriam muito bem-vindas – se bem desenhadas. Um bom debate de políticas públicas é condição necessária para que as reformas sejam bem-sucedidas, algo que parece ser muito difícil na atualidade. Nosso problema precede as próprias reformas. O governo é incapaz, não tem agenda econômica e flerta constantemente com imoralidades populistas e autoritárias.

Discutir reformas no atual ambiente político que vivemos é, no mínimo, criar o ambiente propício para que as reformas sejam mal desenhadas e, no máximo, deixar que reformas importantes para o nosso país funcionem como cortina de fumaça para a inépcia e incapacidade de gestão do Estado. As reformas hoje, infelizmente, são uma distração à incapacidade do governo atual. O governo foi incapaz em lidar com a crise sanitária – em que pé anda nosso plano de vacinação federal? –, de levar adiante suas próprias propostas – antes mesmo da pandemia – e segue mais focado no aparelhamento das instituições políticas do que em fazer política e levar uma agenda econômica adiante.

Isso ficou evidente na lista de prioridades que o Executivo encaminhou à nova mesa do Congresso Nacional. Foram 35 prioridades listadas – um número bastante otimista ou irrealista para uma lista que deveria conter prioridades. Na lista constam as famosas reformas Administrativa, Tributária e também a Independência do Banco Central e privatização da Eletrobras. Junto com isso, temos mineração em terras indígenas, concessões florestais, cobrança do pedágio freeflow, armas, revisão da lei de drogas, aumento de pena para pedófilos e para abuso sexual de menores e por aí vai. Uma lista desfocada, que deixaria ambientalistas e juristas de cabelo em pé e que escancara a falta de compromisso com a economia.

Com ema, leite condensado, retweets de baixaria no carnaval, discurso pseudo-liberal e pseudo-reformista, 35 “prioridades”, afirmar que hoje o que mais precisamos são reformas econômicas é legitimar um governo que não respeita os ritos políticos e não está à altura das instituições brasileiras. É deslegitimar a importância das próprias reformas, achando que essas poderiam ser feitas em um ambiente de desrespeito à cadeira presidencial, a valores humanitários e em um ambiente claramente disfuncional do ponto de vista de gestão.

Passamos, portanto, por uma necessidade crescente que nos impele a uma escolha coletiva. Devemos escolher o futuro que queremos como país. Para isso, parafraseio o grande historiador Rui Tavares, é preciso dominar o presente. Só faremos isso conseguindo fazer sentido do nosso passado. 1 Essa tarefa, ainda mais árdua entre tanta desinformação e pós-verdades, é fundamental agora. Pedir para um governo que já se mostrou incapaz de gerir o país para que ele tome a frente na gestão de reformas fundamentais é dar legitimidade a quem já se mostrou ilegítimo. Neste ambiente, até as reformas viraram distrações ao fundamental. A incapacidade de gestão.

1 Para os interessados em história, recomendo o podcast do historiador Rui Tavares, Agora, agora e mais agora.


Laura Karpuska é pesquisadora da Escola de Economia de São Paulo da FGV, com doutorado em Economia pela Universidade de Stony Brook. Trabalhou no J.P. Morgan e na BlueLine Asset Management. Coordena o "Podcast das economistas", que busca dar mais voz às pesquisadoras brasileiras e incentivar jovens mulheres à profissão.

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