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Ilton Caldeira

Que falta faz uma marcação a mercado

Nos EUA, só os grandes bancos são obrigados a contabilizar a variação no preço dos títulos em carteira até o vencimento, a chamada marcação a mercado

bancos EUA

Quebra recente de bancos nos Estados Unidos revela-se mais uma barbeiragem administrativa de gestão de ativos do que uma crise sistêmica grave, ao menos por enquanto | Foto: Getty Images

Passado o auge da tempestade que abalou o setor financeiro nas últimas semanas, levantou muitas dúvidas e levou consigo três bancos médios americanos, podemos afirmar com mais propriedade, e menos catastrofismo, que o evento não é nem de longe uma reprise de 2008. Está mais para barbeiragem administrativa e de gestão de ativos do que crise sistêmica.

Silvergate Capital e Signature Bank eram os dois principais bancos para empresas de cripto, enquanto o Silicon Valley Bank (SVB) tinha muitas startups, inclusive de cripto, e fundos de Venture Capital como clientes. O First Republic Bank, foi resgatado do mar com uma bóia de US$ 30 bilhões feita por 11 bancos de Wall Street.

Muitos poupadores comuns, que acompanham de forma lateral os movimentos dos mercados financeiros, ainda custam a entender como instituições com bilhões mobilizados em títulos do Tesouro americano, em teoria investimentos seguros e confiáveis, sucumbiram rapidamente em um cenário de juros em elevação, o que segundo a teoria econômica seria algo favorável para os bancos e sinal de mais lucros.

Mas não foi bem assim que o roteiro se desenrolou. Na Califórnia, terra do cinema, o SVB viu seus depósitos dobrarem de US$62 bilhões no início da pandemia para US$124 bilhões até 2021. Com esses recursos resolveu comprar títulos do Tesouro dos EUA com vencimento no longo prazo e optou por carregar esses títulos.

Aí o Federal Reserve, o Banco Central americano, resolveu mudar a postura, até então mais leniente com a inflação, e passou a promover sucessivos aumentos nas taxas de juros. Como os juros subiram forte, os títulos longos do Tesouro que o SVB possuía perderam valor porque haviam sido adquiridos a uma taxa mais baixa que a atual.

Nos Estados Unidos, apenas os grandes bancos são obrigados a contabilizar a variação no preço dos títulos que mantêm em carteira até o vencimento, a chamada marcação a mercado. Um banco médio, como foi o caso do SVB, ao não fazer a marcação a mercado deixou tudo às escuras. Sua carteira não refletia os movimentos das taxas de juros e, portanto, o banco não reconhecia as perdas ou ganhos ao longo da vida dos títulos que possuía.

Ao tentar se desfazer desses ativos a preços depreciados que os problemas de liquidez do SVB ficaram mais nítidos para investidores e correntistas. A cortina caiu rápido e deixou outros atores com problemas semelhantes à mostra em praça pública. O mocinho do filme veio em socorro, e o resto do enredo já é bastante conhecido do público.

Aqui é interessante ainda pontuar os dois principais riscos, digamos assim, que podem afetar as operações dos bancos e instituições financeiras. O risco de crédito do emissor do papel, que no caso dos Títulos do Tesouro americano, é zero ou algo próximo de zero. E o risco de mercado, que está atrelado às variações da taxa de juros, inflação, câmbio, preços de ações em bolsas de valores entre outros. No caso dos bancos liquidados ou resgatados nos EUA o risco de mercado foi determinante.

A depender do Fed, a situação para os bancos pequenos e médios poderá seguir desafiadora nos próximos meses. No comunicado divulgado em 22 de março, após dois dias de reunião que definiu um novo aumento na taxa de juros, a autoridade monetária destacou que “o sistema bancário dos EUA é sólido e resiliente. É provável que os desenvolvimentos recentes resultem em condições de crédito mais apertadas para famílias e empresas e pesem na atividade econômica.” E reforça em outro trecho que: “O Comitê está fortemente comprometido em retornar a inflação ao seu objetivo de 2%.” Atualmente o índice de inflação nos EUA está em 6% no acumulado em 12 meses.

Uma outra questão de fundo no radar da autoridade monetária é o recuo na globalização. Várias empresas americanas estão trazendo de volta ao país a produção antes estacionada na Ásia, que permitia ganhos de escala com mão-de-obra barata e insumos mais em conta. Mas trazer empregos de volta pode sim ser um componente inflacionário extra porque os trabalhadores americanos custam mais. Esse custo será repassado aos preços dos bens e serviços. Dessa forma, pode ser prudente supor que um período inflacionário prolongado pode pairar sobre a economia dos Estados Unidos.

Essa reviravolta era algo possível de se prever, a não ser por um detalhe: o timing. Mas os agentes do mercado sabem que afrouxamento fiscal, inflação baixa e juros baixos não caminham de mãos dadas pela mesma trilha por muito tempo. Uma hora a ruptura chega e traz seu preço.

P.S.: No Brasil, a Circular nº 3068 do Banco Central, de 8 de novembro de 2001, estabeleceu os critérios para registro e avaliação contábil de títulos e valores mobiliários, a chamada marcação a mercado.


Ilton Caldeira é jornalista de Economia e Política e especialista em Relações Internacionais pela FGV-SP. Nos Estados Unidos é Head de Comunicação da Dell’Ome Law Firm e sócio da consultoria Smart Planning Advisers.

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