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Joaquim Levy

Metas baseadas na ciência

A imprecisão que pode surgir sobre os compromissos ESG ou de redução de emissões de gases de efeito de estufa é real e tem motivado boas iniciativas para enfrenta-la

No Brasil, o sucesso e potencial das energias solar e eólica e dos biocombustíveis permitem falar com confiança sobre as metas globais para zerar emissões de gases do efeito estufa | Foto: Getty Images

Um conservador genuíno não crê que a natureza humana tenha mudado muito nos últimos milênios. Ele lê as notícias e se lembra das mudanças que Sila trouxe à república romana, talvez favorecido pelas forças econômicas emergentes na época. O feliz romano em pouco tempo cortou a alçada dos tribunos do povo, terceirizou a execução da justiça no estilo de uma recente lei do Texas, e expandiu o senado para controla-lo melhor. Figura atemporal, seu epitáfio dizia que ninguém havia sido tão bom com os amigos e tão mau com os inimigos.

Provavelmente, o conservador tampouco se espanta de que haja quem sugira que a guerra na Ucrânia tornou a mudança climática menos relevante. Ou que os compromissos com os temas ambientais, sociais e de governança (ASG/ESG) sejam às vezes exagerados ou distorcidos. Afinal, é comum questões estruturais perderem nitidez diante de um problema inesperado, e que pessoas e instituições não respondam adequadamente a uma onda popular, até por não investirem o suficiente para entender as exigências que ela traz.

A imprecisão que pode surgir em relação aos compromissos de ESG ou de redução de emissões de gases de efeito de estufa é real e tem motivado iniciativas para enfrenta-la. Uma delas é a catalogação sistemática de atividades e setores segundo suas emissões. A taxonomia assim criada pela União Europeia (UE), que inspira um esforço similar pelo Banco Central do Brasil, procura indicar com precisão se uma atividade é “verde” ou ESG para efeitos regulatórios de investimentos e promessas aos consumidores.

Outras iniciativas procuram dar lastro aos compromissos feitos pelas empresas. Dado os compromissos soberanos no Acordo de Paris serem insuficientes para evitar o aquecimento global acima de 1,5º C nesse século, muitas empresas tem prometido zerar suas emissões até 2050. Infelizmente, mesmo entre as milhares de firmas que se juntaram à Corrida para o Zero (Race to Zero) estimulada pela ONU, nem sempre fica claro como essa vontade será realizada.

A vagueza de muitos anúncios para 2050 não surpreende. No Brasil, o sucesso e potencial das energias solar e eólica e dos biocombustíveis permitem falar com confiança sobre net zero. Mas, as tecnologias atuais não permitem muitos países reduzirem as emissões fósseis nem pela metade nesse horizonte, como indicado pela Agência Internacional de Energia. Uma alternativa para esse impasse são trajetórias com metas intermediárias e indicações de como chegar lá. Essa é a inspiração da UE visar emissões limitadas em 2030 a 55% daquelas em 1990. Também é a motivação do consórcio de ONGs reunidas na SBTi (iniciativa para Metas Baseadas na Ciência), que procura validar por padrões próprios os planos das empresas que procuram seu auxílio.

Esse esforço não é fácil. Primeiro há a questão da abrangência, ou escopo, das metas que envolvem (1) as emissões da própria empresa, (2) aquelas associadas à energia usada e, (3) as produzidas pelos fornecedores e usuários dos produtos da empresa. No caso do escopo 3, quão longe ir na cadeia de fornecedores, evitando manipulações, estimativas frágeis e o “greenwashing”? E como coordenar esforços e criar um mecanismo de créditos para que as emissões sejam efetivamente reduzidas, mas não cobradas repetidamente para cada empresa na cadeia de produção? Que a simples soma de emissões individuais leva a exageros é ilustrado por um conjunto de 1616 empresas dentre as 2233 consideradas de alto impacto pela instituição CDP, para o qual o total de emissões anuais nos três escopos ultrapassava 50GtCO2, ou uma vez e meia as emissões globais de origem fóssil ou de processos industriais.i

Ter a adesão de empresas a padrões pré-estabelecidos é um segundo desafio. Mesmo quando instituições como o CDP incluem na sua governança representantes da indústria de óleo e gás, aço, químicos, etc. As empresas arroladas pela SBTi valem juntas mais de USD 30 bilhões, mas suas emissões nos escopos 1 e 2 somam apenas 1.5GtCO2 por ano, ou menos de 10% das emissões equivalentes das empresas na lista de alto impacto e 5% das emissões globais de origem fóssil. Grande parte daquelas empresas ainda não tem planos validados pela SBTi e a maioria não divulga emissões ou suas reduções de maneira sistemática. Na América Latina (e Brasil), apenas 25 (12) das 90 (42) empresas consideradas de alto impacto por suas emissões e valor de mercado têm compromissos para 2050, segundo a SBTi. O que é uma proporção maior do que na Ásia, onde apenas 130 das 884 companhias naquele grupo têm esses compromissos.ii

Uma terceira dificuldade, com implicações para o Brasil, é a hierarquia de ações admitidas por essas organizações. SBTi e CDP postulam que, de acordo com a ciência, compensações fora da cadeia de produção, e.g., pela compra de créditos de carbonos lastreados em emissões evitadas pela conservação de florestas, não contribuem realmente para se chegar a emissões zero e devem ser acessórias aos planos das empresas. Créditos associados à remoção (sequestro) de carbono são mais bem vistos, mas não necessariamente aqueles lastreados no reflorestamento. É correto afirmar que, se as florestas existentes hoje ainda estiverem de pé em 30 anos, mas as empresas continuarem a emitir, não teremos chegado ao “net zero” em 2050. Mas, um posicionamento que limite o alcance de soluções baseadas na natureza (SBN) pode acelerar o aquecimento global, ao diminuir as fontes de financiamento para combater o desmatamento e inibir a remoção de carbono via novas florestas.

Felizmente, conservadores e progressistas vão se dando conta de que valorizar as SBN, garantindo-lhes integridade; acabar com o desmatamento ilegal; e revisitar as metodologias de contabilização das emissões do metano, reconhecendo, como destacado recentemente pela FGV, a curta vida desse gás na atmosfera, é cada vez mais importante para o Brasil competir na nova economia do clima.

i: https://cdn.cdp.net/cdp-production/comfy/cms/files/files/000/005/019/original/The_2021_CDP_SBT_Campaign_Sample.pdf
ii: https://sciencebasedtargets.org/resources/files/SBTiProgressReport2021.pdf

Obs.: publicado em 23/06/2022 no Valor Econômico


Joaquim Levy é diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados no Banco Safra. Ex-Ministro da Fazenda, Levy é engenheiro naval pela UFRJ, mestre pela FGV e PhD em economia pela Universidade de Chicago. Tendo sido CFO e Diretor Gerente do Banco Mundial e Vice-Presidente de Finanças do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ele foi Presidente do BNDES e Secretário do Tesouro Nacional do Brasil, além de ter trabalhado no mercado financeiro, tendo sido responsável por uma das principais gestoras de ativos do país.

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