Há sempre muita expectativa e curiosidade quando se fala de finanças. A complexidade do crédito, o seu alcance transformador e as grandes somas frequentemente associadas à atividade financeira justificam esses sentimentos. Não é diferente quando se fala do que as finanças podem fazer para o enfrentamento da mudança do clima.
Um dos pontos altos na COP26 foi o anúncio de que a Aliança Financeira para Emissões Líquidas Zero (Gfanz) havia reunido mais de 450 instituições financeiras. Esses bancos, seguradoras e gestoras de ativos, elas controlam juntas mais de US$ 130 trilhões em ativos. A cifra é difícil de entender, mas equivale a perto de seis vezes o PIB americano.
Os membros da Gfanz visam zerar suas emissões de carbono, estabelecendo uma trajetória nessa direção e contribuindo para financiar a transição energética indispensável para frear o aquecimento global. A aliança vai buscar esses caminhos com a ajuda de entidades científicas ou técnicas associadas à questão climática, além de provedores de índices, auditores e agências de risco.
Com menos alarde, uma ampla infraestrutura regulatória para a transformação das finanças também está sendo montada. O FMI vai incluir o clima na análise das vulnerabilidades financeiras dos países, e a as normas internacionais de contabilidade (IRFS, adotadas no Brasil também) devem ser adaptadas para refletir os riscos climáticos. Muitos governos e bancos centrais, inclusive o brasileiro, passarão a exigir demonstrações financeiras alinhadas às propostas da TCFD, a força tarefa do clima criada em 2015.
O que muitos se perguntam é se essas iniciativas farão diferença. O próprio inspirador da Gfanz, o ex presidente do Banco da Inglaterra Mark Carney, reconhece que as instituições financeiras não vão conseguir promover mudanças sistêmicas sozinhas. Essas mudanças dependem de empresas e consumidores internalizarem o custo do aquecimento global, o que pode ser conseguido se os governos estabelecerem tetos para as emissões de carbono ou as tributar. Dos mercados de carbono sairão os sinais de preço para as instituições financeiras direcionarem o capital necessário à transição energética.
Mesmo sem esses sinais, o setor financeiro tem se mobilizado, inclusive no Brasil. Os bancos estão aumentando a oferta de produtos ESG e revendo suas carteiras de empréstimos. Quando possível aproveitam-se as possiblidades fora do país, como no caso de emissão de certificados de operações estruturadas com ações de empresas globais no setor de energia limpa, ou da criação de fundos que investem no mercado de carbono europeu. No Banco Safra há a convicção de que essas propostas já tem ressonância com os investidores que entendem seu valor, inclusive no longo prazo.
A revisão das carteiras de empréstimos deve ser criteriosa e ponderada. Mais produtiva do que a exclusão sumária de setores econômicos é a verificação do cumprimento das melhores práticas por parte de cada tomador. No campo ambiental valem os princípios de conhecer seu cliente que regem os cuidados com a lavagem de dinheiro e outras práticas condenadas. Para maximizar a transparência dessa revisão será útil desenvolverem-se metodologias aplicáveis a toda a indústria. O espaço para a auto regulação, sob o crivo da sociedade, é bastante grande e compatível com as intenções da Gfanz.
Os bancos brasileiros também entendem que nossa transição energética é mais fácil do que aquela na maioria dos países. As energias renováveis aqui já são mais baratas que as fósseis, que poderão ser prescindíveis se soubermos usar bem nossos ativos hidroelétricos e de biocombustíveis, reforçando-os com investimento adequado na transmissão de eletricidade. Não deve faltar financiamento para as renováveis, já que, dadas nossas vantagens, a economia de baixo carbono pode criar um ciclo de crescimento como foi o do café, atraindo capitais para o país.
Não se deve desconhecer o ceticismo daqueles que acreditam ser impossível abandonar os combustíveis fósseis no curto prazo ou que seria muito inflacionário fazê-lo, prejudicando os pobres. A recente alta do preço do petróleo tem sido usada como indicação disso. Apesar de ela ter mais a ver com a capacidade de produção mantida ociosa pela OPEP do que com uma falta de investimento no setor. E de que as mudanças climáticas afetarão muito mais os pobres do que os ricos. Esse ceticismo esquece principalmente que, às vezes, inovações aparentemente simples podem trazer grandes mudanças.
Uma dessas inovações com grande potencial é o chamado e-power para veículos. Em poucas palavras trata-se de usar o motor a combustão interna (MCI) para alimentar a bateria de um carro elétrico, ao invés de usá-lo na tração desse veículo. A simplificação na construção dos carros e a redução no uso do combustível obtidas são extraordinárias. Com um motor trabalhando em rotação constante, um litro de álcool pode fazer um carro assim andar de 20 a 30 quilômetros. Com uma bateria de 50 km de autonomia, um carro desses pode ser 30% mais barato que carros tradicionais se não incluir mecanismos de recuperação de energia na frenagem.
Considerando a renovação de 10% da frota ao ano e um preço de carbono módico, carros com e-power ou variantes da tecnologia poderiam zerar o consumo de gasolina no país antes de 2035. O suprimento de etanol previsto daria para abastecer uma frota de veículos leves maior do que a atual, e até uma nova frota de caminhões elétricos. A balança comercial ganharia com a maior exportação de derivados de petróleo.
Já há carros com e-power rodando na China e na Tailândia (usando gasolina). Eles provavelmente poderão ser competitivos aqui, sem subsídios à sua produção e com financiamento farto pelos bancos brasileiros.
Na energia, como na agricultura de baixo carbono, onde fundos de investimento e cédulas do produto rural verdes estão criando raízes, o sistema financeiro brasileiro está aproveitando as oportunidades ligadas ao clima para alavancar negócios que geram empregos e riquezas.
- Publicado originalmente no jornal Valor Econômico de 23 de dezembro de 2021.