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Renata Taveiros de Saboia

Semiótica – tudo passa por ela

A maneira mais eficiente de tomarmos boas decisões inclui saber que somos vítimas de nossos modos de distorcer a realidade e querer saber, evitando a tentativa de dar uma resposta

Aérea dos Lençóis Maranhenses

Nossos vieses deformam a realidade de acordo com nossa visão e insistimos em encontrar evidências que comprovem nossa teoria | Foto: Getty Images

Férias em família nos Lençóis Maranhenses. Natureza espetacular, tempo lindo, hospitalidade a toda prova.

Além de curtir as maravilhas naturais, meus filhos e eu adoramos conhecer a cultura, o modo de vida, os hábitos e costumes das pessoas que vivem nos locais que conhecemos durante as nossas viagens.

Dessa vez não foi diferente. No entanto, o que percebemos a respeito das nossas observações foi o aspecto mais interessante do passeio. Ciências do comportamento na prática.

Logo na chegada à cidade, me deparei com uma agência da Caixa Econômica Federal que oferecia uma lista de serviços financeiros. Tinha o de sempre: empréstimo consignado, FGTS, INSS, seguro desemprego e mais uma categoria nova e bem inusitada para mim, o seguro pescador!

Meu olhar míope e limitado de paulistana já me entregou na largada. Nunca havia me passado pela cabeça a possibilidade de existir este tipo de seguro, o que faz todo sentido quando se vive numa comunidade de pescadores, que depende, basicamente, do produto dessa atividade para sobreviver.

Também percebemos logo que o pequeno comércio na entrada das dunas, o barzinho de bebidas dentro das lagoas – sim, literalmente dentro, na água – os restaurantes caiçaras, o motorista de lancha local que faz a travessia pelo Rio Preguiças e os vendedores de chapéus na fila da balsa, todos aceitavam Pix.

Meu filho, que está no segundo ano de engenharia e acabou o módulo de introdução à economia, logo comentou: “puxa, que legal! O Brasil está se bancarizando e mais pessoas estão sendo incluídas financeiramente, pois sabem usar muito bem o Pix.”

Minha filha, que é pesquisadora de inovação em fintechs, começou a pensar a respeito de como teria sido a campanha de divulgação do Pix no nordeste brasileiro para que essa operação ganhasse essa capilaridade e familiaridade entre a população local.

A conversa animou, rendeu boas discussões, hipóteses, críticas e vislumbrou várias consequências.

Porém, como sabemos bem, e terminamos argumentando entre nós mesmos, aquilo que parece nem sempre é o que é.

Explico:

É verdade; o fato de observarmos uma grande parcela da população simples daquela região usando Pix, com facilidade, nos leva a crer que são pessoas bancarizadas. Fazemos uma relação linear direta, atribuímos o símbolo “Pix + celular com internet” ao significado inclusão financeira das camadas mais vulneráveis da população, o que, por sua vez, significa desenvolvimento no norte do Brasil.

Errado. Justamente o oposto.

Inclusão financeira precisa atender principalmente a dois requisitos: oferecer acesso a serviços adequados às necessidades reais das diferentes camadas da população e promover o bom uso dos serviços oferecidos para melhorar a saúde financeira dos indivíduos e famílias. Não era exatamente isso que estávamos vendo.

“Desde 2013, o Banco Central denomina inclusão financeira como acesso, uso e uso com qualidade de Cidadania Financeira – nome que indica como políticas de inclusão estão associadas à efetivação de direitos. Muitas vezes, considera-se incluído alguém que possui uma conta bancária. Contudo, a simples bancarização sem qualidade de uso gera um grupo de cidadãos e consumidores conhecidos no mercado como underserved – ou mal servidos – pelo sistema financeiro. É um público com acesso a produtos e serviços caros, de baixa qualidade e juros exorbitantes.” (https://artemisia.org.br/servicosfinanceiros/).

Sem dúvida nenhuma o Pix conseguiu seu intento: “Em novembro de 2020, o BCB lançou o Pix, com o potencial de democratizar o acesso aos serviços de pagamento eletrônicos no país e incentivar ainda mais a entrega digital de serviços financeiros para a população de baixa renda.” (relatório de Cidadania Financeira, Banco Central do Brasil).

No entanto, não é indicador direto de aumento da inclusão financeira, apesar de democratizar o acesso aos serviços de meio de pagamentos.

Não é preciso ter conta bancária para usar o sistema Pix e, em nenhum momento, a palavra “banco” aparece na equação, o que por sinal, ajuda a disseminar a facilidade do Pix.

A palavra “banco” tem diferentes significados e carrega consigo muitos conceitos e associações subjetivas. Para camadas menos educadas financeiramente, traz a ideia de algo muito complicado de se entender e usar, coisa para quem é “estudado” e não “mora na roça”, entre outras coisas – colaboração da minha filha pesquisadora da área de inovação financeira.

Dou outro exemplo, ainda na mesma viagem.

Fomos visitar um povoado de cultivo e exploração da castanha de caju para ser comercializada por grandes empresas e exportada.

Um lugar muuuito simples, no meio da restinga. Inóspito.

Mas, para nossa surpresa, a casa de tijolos e telhado de folhas de Buriti tinha duas antenas parabólicas: uma para internet rural e outra para TV via satélite.

Qual nossa conclusão? Obviamente a exploração da castanha devia ser uma boa fonte de renda para todos os nativos e eles teriam recursos financeiros para suprir suas necessidades básicas, afinal eles tinham luz elétrica, internet e TV.

Nós estávamos errados, novamente.

Essa família era a que tinha as melhores condições da região. Muitas outras estavam em situação bastante difícil, com problemas inclusive para comprar alimentos, leia-se farinha de mandioca, principalmente.

E mais, também fizemos suposições a respeito de qual a porcentagem do valor final do quilo da castanha que ficava para elas. As estimativas eram de que o retorno para as famílias era baixo – não descobrimos ao certo.

Mas, na hora de comprar direto dos produtores, o preço era o mesmo praticado em São Paulo… surpresa de novo… sem razão aparente…

A extração da castanha de caju se dá num processo totalmente manual, com a família sentada ao redor de uma mesa de madeira rústica, batendo na casca da castanha, ainda quente, com pedaços de ferro para abrir o invólucro resistente e revelar a pérola escondida: a parte comestível, maravilhosa!

Castanhas tal qual conhecemos em São Paulo, amamos e pagamos fortunas por elas. Depois de conhecer o processo eu pagaria ainda mais por essa verdadeira iguaria natural!

Mais uma vez, achamos que estava tudo bem. Se os produtores vendiam para os turistas ao preço de São Paulo, sabiam o valor do que estavam vendendo e estariam se dando bem.

Só que não é bem assim…

Elas trabalham muito e, às vezes, perdem tudo por não terem como refrigerar as castanhas, que acabam apodrecendo… falta eletricidade.

Não. As condições não são boas só porque essas pessoas têm antena parabólica.

Apesar de realizarem manualmente o processo inteirinho, ficam com uma parcela irrisória do valor final do produto, descobrimos depois.

Os Lençóis são lindos, muito além do que se pode imaginar e a viagem seguiu inesquecível.

O objetivo deste artigo, no entanto, não é fazer marketing das maravilhas naturais do Brasil.

Eu quero chamar a atenção para a forma como tiramos conclusões a respeito das mais diferentes coisas com as quais nos deparamos nos mais diferentes âmbitos da nossa vida.

Criamos nossa interpretação a respeito do mundo com base em conceitos preexistentes, que condicionam o nosso processo de atribuição de significado aos diferentes símbolos aos quais somos expostos.

Eles podem ser qualquer atividade, comunicação linguística ou não, sentimentos, analogias e metáforas em seus contextos antropológicos e sociológicos. A tal da semiótica.

Como isso se relaciona com comportamento humano e comportamento financeiro?

Cada um de nós possui sua semiótica, que pode ser compartilhada consensualmente com um grupo em comum ou cultura particular.

Todos os que pertencem a esses grupos concordam, pelo menos em parte, com o significado de determinados símbolos.

O problema é que, cada um de nós acha que sua interpretação é a verdadeira e a única possível de existir. Tiramos nossas conclusões, fazemos nossas avaliações e tomamos nossas decisões, inclusive financeiras, com base nesses símbolos compartilhados por um pequeno grupo de pessoas.

Nossos vieses deformam a realidade de acordo com nossa visão e insistimos em encontrar evidências que comprovem nossa teoria. Porém, as coisas não funcionam exatamente assim.

A maneira mais eficiente de tomarmos boas decisões, inclui, em primeiro lugar, saber que somos vítimas de nossos próprios modos de distorcer a realidade, nossa visão de mundo e semiótica individual.

Sabendo disso, o próximo passo é fazer um esforço para não deformar a realidade a nosso favor e, olhar com atenção e curiosidade, para o que se apresenta.

Perguntar, querer saber e não tentar dar a resposta. E, se a informação for contraditória às nossas crenças, saber se surpreender e mudar de opinião.

Sermos mais livres e desapegados, inclusive do significado que atribuímos a todos os símbolos que dão sentido à nossa realidade, seja ela consensual ou não.

Só assim poderemos fazer o sobrevoo aos Lençóis Maranhenses, nos deslumbrarmos e nos surpreendermos de forma inimaginável com as maravilhas do nosso esplendoroso Brasil!!


Renata Taveiros de Saboia é fundadora da Jeté Consultoria, empresa pioneira na aplicação dos insights da economia comportamental e neurociências dentro das organizações. É economista pela FEA-USP, especializada em Economia Comportamental aplicada à Marketing pela Yale University, pós-graduada em Neurociência pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. É professora de Neuroeconomia nos cursos de Pós graduação da FGV, FIA, Santa Casa e Einstein. Membro da Society for Neuroeconomics,. Foi bailarina, origem do interesse em desenvolver pessoas com disciplina e excelência.

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