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Matheus Rosignoli

A simetria do regime de metas

Há indicações de que o IPCA abaixo de 5% em 2022 está “contratado” pelo relaxamento das pressões de preços da energia, melhora da hidrologia no Brasil e câmbio menos volátil

Dólar

Câmbio menos volátil em 2022 deve ajudar a conter a inflação abaixo de 5% | Foto: Getty Images

O regime de metas para a inflação foi implementado no Brasil em 1999. Esse regime havia sido adotado de forma pioneira na Nova Zelândia, sendo adotada nos anos seguintes por diversas economias, mas talvez tenha tido sua maior validação no Brasil, que o adotou bem antes de, por exemplo, os EUA. Além da meta propriamente dita, o regime contempla uma banda com limite inferior e superior, cujo objetivo é acomodar choques que causem um desvio da inflação em relação à meta. O descumprimento da meta se dá, assim, quando a inflação fica abaixo do piso ou acima do teto de flutuação.

A meta para a inflação no Brasil foi definida inicialmente em 8% ao ano, com um plano de sua redução até valores mais próximos dos padrões internacionais. Mas, com a incidência de choques na economia em 2001 e 2002, a convergência para a meta, então de 4,5% só ocorreu a partir de 2004-2005.

Em 2018, lançou-se um processo de alinhamento da meta com os pares, em seguimento à redução da banda de flutuação adotada em 2015. Previu-se a redução da meta de inflação em 0,25 ponto percentual por ano a partir de 2019, o que foi reafirmado nos anos seguintes, com a previsão da meta de 2024 em 3,0%. Esse valor é compatível com a meta adotada em países como Chile, Colômbia e México. Já a banda, foi reduzida de 2,5 pontos percentuais para os atuais 1,5 ponto.
A inflação se situou fora da banda em apenas cinco dos 23 anos de vigência do sistema de metas, tendo a maior parte dos desvios ocorrido nos primeiros anos de implementação do sistema, e alguma recorrência de resultados bastante pertos do teto da banda no começo dos anos 2010. De 2004 para cá tivemos descumprimento da meta apenas em 2015 e em 2017.

Sucedendo anos com inflação consistentemente acima da meta, apesar de dentro da banda convencionada, e tendo em vista a necessidade de se fazer um amplo ajuste macroeconômico para corrigir desequilíbrios acumulados até então, a inflação em 2015 estourou o teto da meta. Dentre os principais fatores que explicam esse rompimento, tivemos o realinhamento nas tarifas de energia elétrica e depreciação cambial de mais de 60%. Ela fechou o ano em 10,67%, em um quadro de grande instabilidade política, que contribuía para que, apesar dos ajustes já realizados, a mediana de projeções do mercado para a inflação do ano seguinte no relatório Focus de dezembro de 2015 fosse de 6,9%, apontando para um novo descumprimento da meta. Naquele momento, a preocupação com a inércia inflacionária e a política econômica sobrepunha-se ao efeito baixista que pudesse ser associado à forte contração econômica antevista para 2016.

No entanto, a inflação corrente e as projeções para seus valores futuros caíram rapidamente após meados de 2016, em parte pela nova orientação fiscal do governo, que permitiu uma apreciação da moeda, apesar do agravamento da recessão. A contribuição da gasolina e da energia elétrica para a variação do IPCA em 12 meses, por exemplo, caiu de 0,72 e 1,47 ponto percentual em dezembro de 2015 para 0,10 e -0,41 p.p. em dezembro de 2016.

O cenário em 2021 guarda alguma semelhança com o final de 2015, por conta especialmente da incerteza fiscal, mas também pelo fato que os fatores que impulsionaram a inflação ao longo do ano talvez não estejam presentes em 2022. A sequência de choques na economia nos últimos 18 meses elevou a inflação de preços administrados para acima de 17% e de alimentos para próximo de 8%. A depreciação cambial tem afetado os custos das empresas. E não obstante a perspectiva de fraco crescimento do PIB nos próximos trimestres, as expectativas de inflação para 2022 estão acima do limite superior da banda de flutuação e aquelas para 2023, levemente descoladas da meta.

O pessimismo com a inflação em 2022 parece exagerado à luz da experiência de 2015-16. Considerando que o preço do petróleo não vá para $100/barril, o regime de chuvas em 2022 seja regular e a economia mundial se acomode, a equipe Safra acredita que haverá um processo de desinflação em 2022. Mesmo sem uma política monetária extremamente restritiva a inflação pode cair para abaixo de 5% ao fim do próximo ano.

A persistência de uma postura muito restritiva por parte do Banco Central pode levar a inflação de 2023 para patamar bem abaixo do centro da meta, a exemplo do ocorrido em 2017. Naquele ano, o Banco Central preferiu consolidar a ancoragem de expectativas, o que levou a inflação a despencar, com o auxílio da apreciação do câmbio e de um regime de chuvas benigno. A inflação de alimentos acumulada em 12 meses veio de um pico de 16,8% em agosto de 2016 para -4,9% nos finais de 2017. No mesmo período, a inflação de Serviços cedeu de 7,0% para 4,2% e a alta dos preços dos Bens Industriais veio de 6,2% para 0,9%. Assim, a inflação total de 2017 ficou em 2,95%, tendo a meta de 3,0% sofrido um inédito descumprimento pelo limite inferior.

Hoje, ainda não se vislumbram motivos para a apreciação cambial. O efeito baixista de uma eventual queda do preço das commodities poderia até ser amortecido por alguma perda de valor do real. Mas o risco líquido nessa frente parece moderado, já que no curto prazo a moeda tende a se fortalecer com a persistência da política monetária apertada.

Além da questão fiscal, a inflação brasileira poderia estar menos “ancorada” hoje do que em 2017 por conta da maior inflação global. Há dúvida se essa inflação vai se dissipar naturalmente com a atual política monetária americana, ou irá requerer maior contração monetária a nível global. A transmissão da inflação global para os preços domésticos evidentemente torna a tarefa do Banco Central Brasileiro mais difícil.

Esses e outros riscos “assimétricos” têm justificado a cautela maior do Banco Central, respondendo ainda à preocupação do mercado financeiro e de outros agentes econômicos em geral com respeito às perspectivas fiscais e outros fatores refletidos nos recentes ajustes nos preços dos ativos brasileiros.

Em suma, há indicações de que a desinflação que leve a uma variação do IPCA abaixo de 5% em 2022 está “contratada” pelo relaxamento das pressões sobre os preços da energia a nível mundial, uma melhor hidrologia no Brasil, e a expectativa de um câmbio não muito volátil. Essa expectativa seria justificada pelo bom comportamento das exportações brasileiras e pelo passo moderado do aperto monetário global, mesmo depois dele se tornar um pouco mais estugado a partir de novembro. Assim, os indícios são de que uma política monetária em terreno substancialmente restritivo nos próximos semestres deve ter uma contribuição nuançada sobre a inflação de 2022 e pode levar a inflação para abaixo da meta em 2023. A cautela do Banco Central, traduzida em uma sinalização de política monetária significativamente apertada, deve, no entanto, permanecer até a primeiro trimestre, quando o quadro econômico e político do Brasil talvez esteja mais claro.


Graduado em economia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre pela mesma instituição, Matheus Rosignoli é economista no Banco Safra

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