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Claudio Felisoni de Angelo

Truque de ilusionismo

O programa Desenrola tevê contribuição para reduzir a inadimplência no público de baixa renda, mas a atuação do BC no controle da inflação e a queda dos juros deram uma ajuda significativa

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Dados do Banco Central dão conta que a inadimplência das pessoas físicas é decrescente desde setembro de 2023 | Foto: Getty Images

No final do mês passado foi divulgado pela imprensa um estudo reportando que a inadimplência das pessoas físicas recuou 8,7% para o público de baixa renda beneficiado pelo programa Desenrola. O mesmo estudo acrescenta que essa queda se deu apesar da inadimplência global ter permanecido relativamente estável desde maio de 2023. Para salientar a importância da iniciativa o referido estudo destaca que para o público não contemplado pelo programa do governo federal a inadimplência cresceu 6,7% no mesmo período de observação.

Antes de tomar esses achados como verdade, necessário se faz tecer algumas considerações. Obviamente que a redução da inadimplência é, sem dúvida, algo auspicioso, particularmente em um cenário onde as boas notícias não são recorrentes. As notícias embasadas em estudos com taxas, percentuais e testes, aportam credibilidade ao que está sendo dito. É como o mágico que se vale de coisas visíveis para suscitar algo real naquilo que não se vê.

Inicialmente deve-se dizer que os dados do Banco Central dão conta que a inadimplência das pessoas físicas é decrescente desde setembro de 2023. Isso contraria a primeira afirmação da relativa estabilidade desse indicador.

O segundo aspecto está na conclusão decorrente da comparação de dois grupos: os beneficiados pelo Desenrola e os não aquinhoados pela medida. Esse tipo de teste é muito usado em procedimentos científicos, são os chamados testes A/B. O objetivo principal de um teste A/B é comparar duas ou mais versões de algo para determinar qual delas é mais eficaz em atingir um determinado objetivo.

Para que um teste A/B seja eficaz, é fundamental garantir que os grupos sejam comparáveis e similares em todos os aspectos importantes, exceto pela variável que está sendo testada (ou seja, a diferença entre as versões A e B). Isso é crucial para garantir que quaisquer diferenças nos resultados possam ser atribuídas às variações nas versões e não a outras variáveis externas.

Pois bem, no estudo apontado um grupo é composto pelos beneficiados pelo programa e o outro pelos não contemplados. Quais são as outras variáveis que definem cada um dos dois grupos? Em especial um aumento da inadimplência no grupo dos excluídos do programa Desenrola não poderia ser causado por outra variável que não a ausência do mencionado benefício?

Finalmente, quando se tem uma relação causal com diversas variáveis influenciando um determinado aspecto, é importante relativizar a importância de cada uma das diferentes possíveis causas.

Deve-se lembrar que o Banco Central começou a trajetória de elevação da SELIC em março de 2021, passando de 2% a.a. para 2,75% a.a. A SELIC continuou sendo majorada até agosto de 2022 atingindo a taxa de 13,75% a.a. Manteve-se nesse nível até agosto de 2023, quando iniciou o período de cortes da taxa básica. Esse movimento reducionista trouxe a taxa básica para 10,5% a.a. em maio de 2024.

Foi esse movimento que permitiu reduzir as pressões inflacionárias. Tomando o IPCA acumulado de maio de 2023 a abril de 2024 obtém-se uma inflação de 3,7%. Considerando o mesmo período mensal em 2022 a inflação foi de 12,1%. Portanto, a política do Banco Central foi, sem dúvida, exitosa no controle da pressão inflacionária. Qual foi a consequência desse movimento?

A massa real de rendimentos cresceu 18% de março de 2022 a março de 2024. Foi essa maior disponibilidade de renda, graças a política do Banco Central, que contribuiu efetivamente para redução da inadimplência. O programa Desenrola, evidentemente, tevê uma contribuição, mas não com a intensidade que se apontou. Em síntese, o estudo é um truque de ilusão, que faz um gato doméstico parecer um leopardo.

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Claudio Felisoni de Angelo é professor e coordenador de Projetos da FIA Business School, ligada à Fundação Instituto de Administração da USP. Preside o conselho Laboratório de Finanças e Programa de Administração de Varejo da FIA. É professor titular do Departamento de Administração de Empresas da FEA/USP e presidente do IBEVAR - Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e Mercado de Consumo.

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