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Pandemia afeta saúde mental de formas diferentes

Médico e psicanalista ligado ao HC fala da necessidade de atenção às reações fortes e também aos silêncios prolongados

O médico Gustavo Alarcão

O médico e psicanalista Gustavo Alarcão acompanha a mudança da percepção de seus pacientes em relação ao home-office | Foto: Divulgação

Médico, psicanalista e psiquiatra, Gustavo Gil Alarcão tem acompanhado de perto a evolução de um problema de saúde que cresceu em paralelo à pandemia do novo coronavírus no mundo todo: o desequilíbrio mental.

Embora o diagnóstico seja mais difícil e subjetivo do que para outras doenças, os números apurados desde o início da pandemia no Brasil são alarmantes.

A Secretaria Especial de Previdência e Trabalho registrou recorde de 576,6 mil concessões de auxílio-doença e aposentadorias por invalidez devido a transtornos mentais e comportamentais em 2020, 26% a mais do que em 2019.

Atuando no Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo, Alarcão esclarece que não é possível tratar os sintomas mentais e comportamentais em escala estatística.

Os impactos da doença e do isolamento que ela impõe diferem muito entre as pessoas, mesmo as que estão submetidas às mesmas situações.

Para o médico, autor do livro Resistências, Adaptações e Apropriações, sobre história da psicanálise e da psiquiatria no Brasil, a generalização é, inclusive, perigosa.

Apesas das peculiaridades, ele recomenda para todos: prestar atenção às emoções diante das mudanças, falar sobre o assunto com outras pessoas e, em casos de sofrimento, procurar ajuda profissional.

O Especialista – Estudos mostram o aumento da degradação da saúde mental desde o começo da pandemia. O isolamento tem efeito pior que o medo a doença ou são apenas causas diferentes da piora do bem-estar psíquico e do agravamento de quadros pré-existentes?

Gustavo Alarcão – Há reações agudas e reações crônicas às condições que vivemos. As reações agudas em geral podem ser mais visíveis, mais exuberantes em sua expressão, aparentemente mais intensas. São reações de luta ou fuga, enfrentamento direto ou recuo.

Um evento agudo como a chegada da pandemia evoca respostas mais imediatas: imagine um tsunami, ou uma bomba, um incêndio, um ataque: podemos correr instintivamente, quase sem pensar, o que ocorre com a maioria das pessoas; algumas poderão sentir-se paralisadas, sem condições de reagir. As emoções vão se situar numa variação que vai do medo, susto, ansiedade, pavor ou pânico, raiva, ira, fúria, tristeza. Mais raramente, em crises de rompimento com a realidade, que chamamos de crises psicóticas. Esses sentimentos podem se combinar.

O isolamento, em geral, evocará outras questões: adaptações menos imediatas, tolerância, capacidade de aceitar e administrar frustrações, capacidade de elaborar as perdas, necessidade de pensar e também de criar, inventar. Trata-se, em geral, de respostas menos reflexas e que exigem mais de nossos acervos e repertórios de vida.

Além disso, podemos notar o agravamento das respostas iniciais, ou seja, a piora dos quadros agudos, onde a cronicidade em geral leva ao desgaste, ao aprofundamento, que tem no horizonte o tédio, o esgotamento, a falta de energia, a desistência. São situações mais difíceis de serem trabalhadas porque irão demandar respostas de maior envolvimento de cada um, maior atividade e consequentemente mais trabalho

Existem ganhos para quem está trabalhando no sistema home-office, como o aumento da convivência com a família, a subtração do estresse com locomoção. Essa forma de trabalhar pode, porém, com o decorrer dos meses,  implicar em piora de quadros de depressão e ansiedade?

Sem dúvida. Se a adaptação inicial for bem sucedida, nos mostrará os ganhos, quaisquer que sejam. Escutei muito sobre o menor tempo de deslocamento, a possibilidade de se ficar mais à vontade em casa, de se perder menos tempo com cafés e de se sentir mais produtivo. Mas, na medida em que o tempo passa, aquilo que parecia uma grande novidade e um sucesso pode cobrar seu preço: “sinto falta do caminho que fazia, sinto falta da pausa do café e até daquela pessoa chata de quem reclamava.”

Existem recursos para manter o equilíbrio na rotina de trabalho em casa? Atitudes ou cuidados que podem impedir ou diminuir um desconforto que pode se tornar patológico?

Acredito que a questão aí é observarmos que mudanças para nós humanos não são tão simples assim. Podemos nos adaptar? É claro, óbvio e desejável, mas há custos. Quando a situação é inevitável, ela ocorrerá, independentemente de como eu me sinta, se irei aceitá-la ou não, é uma questão minha. Posso me ressentir e jamais me separar daquilo que foi vivenciado.

Por outro lado, posso elaborar, conviver e assimilar o que se passou. Não se trata então somente de aceitar ou não, porque às vezes precisarei agir, realmente fazer alguma coisa. Sabemos por exemplo todos dos problemas típicos de uma metrópole e como ele nos afetam diretamente, mas, uma vez que muda a situação, mudam as demandas e também as consequências.

Você chegou a perceber nos seus atendimentos ou supervisões casos de ansiedade ou até fobia em relação à volta ao trabalho presencial?

Gostei muito da imagem de uma paciente que me disse que o mundo dela nunca havia se restringido somente às pequenas janelas do computador ou do celular, e que janelas e portas indicavam os horizontes, as entradas e saídas do mundo que ela ansiava por explorar.

O ritmo durante a pandemia é muito ditado pelas dimensões das telas e pelo que se passa nas redes. Por um lado, é fantástico, porque é uma invenção humana, altamente sofisticada e que resolve, literalmente, vários problemas, mas, ao mesmo tempo, pode produzir outros problemas que sequer imaginávamos. Somos complexos, parece que nada é muito fácil para nós humanos, o intransponível mal-estar por nos civilizarmos.

Ansiedade, depressão, fobias. Quais desses distúrbios chamam mais a atenção dos psicanalistas e psiquiatras no Brasil hoje?

Todos estes: ansiedades, fobias, estresses pós-traumáticos e depressões, mostrando as reações agudas e crônicas ao que enfrentamos

Quais são os sinais de que o incômodo pode estar se transformando em uma doença estabelecida?

Gosto da forma como o psiquiatra alemão Kurt Schneider propunha: “sofrer ou fazer sofrer”, como critério para o momento de procurar ajuda.

Somos capazes de reconhecer quando algo não vai bem conosco, seja por sua novidade, seja por sua intensidade, seja por nossa curiosidade e, também pelo que nos dizem outras pessoas.

Há sinais claros, às vezes claríssimos, de que me beneficiaria de ajuda. E há outros sinais, mais silenciosos, e também aqueles que recusamos e preferimos negar. Nossa consciência não está em acordo com aquilo que se passa dentro de nós, sabemos disso pela nossa experiência diária, e é por onde vamos conhecendo como nos estruturamos, como funcionamos, como somos impactados por nosso inconsciente.

Novidades, intensidades, mudanças de padrão, omissões, silenciamentos, dúvidas e inquietações merecem atenção e cuidado, porque podem ser desdobrados em quadros estabelecidos.

Sabemos que nem o exagero nem a negação nos ajudam, mas é difícil estabelecer isso pelo outro. As queixas diretas ou indiretas sinalizam pedidos de ajuda e valem a pena ser consideradas. Não se trata de uma hipervalorização do sofrimento, mas de um aprendizado sobre como reconhecê-lo, assimilá-lo e, quando possível, transformá-lo.

Só chegamos até aqui porque tivemos alguém que nos acolheu, protegeu e alimentou quando sentimos fome, medo e desconforto. Quando nascemos precisamos chorar para respirar e ao mesmo tempo porque estamos indicando o desconforto de chegar ao mundo, tudo é novo e tudo produz reações.

Com o tempo aprendemos a modular nosso choro, nossos gritos e nossos pedidos, essa tarefa fica mais complexa e aprendemos também a nos calar, a não chorar e às vezes a ficar em silêncio. Eu acho recomendável sempre conversar com alguém, pois aí mora a possibilidade de ajuda, a comunicação. Nossa linguagem está aqui não por acaso.

Como cuidar da saúde mental na pandemia

Confira algumas das recomendações da Organização Mundial da Saúde para evitar o risco de transtornos mentais durante o isolamento social imposto pela pandemia:

  • Planeje uma rotina, mesmo que fique dentro de casa: mantenha horários regulares para se  levantar e se deitar e siga as recomendações usuais e rotinas de alimentação.

  • Se estiver em trabalho remoto, faça pausas e se movimente durante o período de trabalho. Sugere-se pausas de 5 minutos a cada 1 hora de trabalho e, preferencialmente, que as pausas sejam ativas.

  • Identifique pensamentos intrusivos, repetitivos e catastróficos que levem à ansiedade. Aceite que eles existem, mas que não necessariamente correspondem à realidade. Descubra o que funciona para seu alívio.

  • Questione e verifique todas as notícias que receber e não repasse o que não for oficialmente confirmado. Reserve um ou dois momentos do dia para se informar.

  • Não discrimine alguém que esteja doente. Ajude-o com orientações para a prevenção da transmissão a outras pessoas.

  • Não procure países ou etnias responsáveis pela pandemia. Discriminar pessoas por sua nacionalidade é xenofobia e produz sofrimento psíquico.

  • Foque em comportamentos preventivos que estão sob seu controle: lavar as mãos, manter distanciamento social, seguir rigorosamente as recomendações das autoridades de saúde.

  • Mantenha o uso das suas medicações regulares, verifique se vai precisar de nova receita e, se preciso, entre em contato com seu médico. Mesmo que seja necessário adiar consultas ou exames, não deixe de se cuidar.

  • Verifique onde pode conseguir auxílio para questões práticas, como atendimento médico, serviços de transporte, entrega de alimentos ou outras compras; acione seus contatos se precisar de ajuda.

  • Evite o uso de álcool e outras drogas.

  • Faça atividades relaxantes como meditar, escutar música, assistir filmes, ler livros ou fazer cursos on-line.

  • Cultive os laços afetivos: aproveite a convivência familiar; mantenha contato com amigos por mensagens, ligações ou vídeos. Telefone para alguém com quem não conversa há muito tempo.

  • Encontre oportunidades para conhecer e divulgar histórias positivas e imagens de pessoas que se recuperaram da doença e queiram dividir sua experiência.

  • Lembre-se de que as restrições impostas no momento são também para cuidar de você, de sua família e evitar contaminações.

  • Se estiver sentindo sofrimento intenso, busque ajuda profissional de psicólogos e psiquiatras: há profissionais e serviços disponíveis mesmo a distância.

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