Precatórios devem ser pagos no prazo legal, defende Pérsio Arida
Um dos idealizadores do Plano Real, economista diz que o problema não é o teto de gastos, mas a falta de gestão e as emendas que criam mais despesas
23/11/2021O economista Pérsio Árida, ex-presidente do Banco Central e um dos arquitetos do Plano Real, defendeu que o governo deve pagar os precatórios no prazo estabelecido pelo Judiciário. Segundo ele, o problema não está no teto de gastos, mas na gestão dos gastos públicos.
“Se alguém tem o direito a um pagamento relacionado a um processo judicial e vende esse direito para outro, e esse comprador ganha na Justiça, a dívida precisa ser paga, o governo não tem o direito de protelar esses pagamentos”.
Um dos problemas, segundo o economista, está na morosidade da Justiça brasileira. “Muita gente não pode esperar a decisão final e vende o seu direito creditício, mas isso não torna o detentor do título ilegítimo”, afirmou, em live da série Cenários promovida pelo Banco Safra em parceria com o jornal O Estado de S. Paulo. A entrevista foi conduzida pela jornalista Sonia Racy e está disponível no Youtube.
“Quando o teto de gastos foi criado, todos sabiam que mais cedo ou mais tarde haveria uma grande pressão para romper o limite, a menos que fossem adotadas medidas para reduzir as despesas obrigatórias, mas a União não fez nada. Exceto o congelamento dos salários dos funcionários públicos, nada mais foi feito para criar espaço para novos gastos”, explicou.
Para Pérsio Arida, a questão dos precatórios é, acima de tudo, uma questão de gerenciamento de riscos. “Qualquer empresa, quando publica o balanço, precisa estabelecer provisões para eventuais questões judiciais. Da mesma forma, nas finanças públicas também não existe nenhum meteoro imprevisível, como alega o governo. Tem gente no governo capaz de prever esses gastos. A obrigação do bom gestor público é justamente planejar. A culpa não é do teto, mas da incúria (negligência) dos administradores”, afirmou.
O problema não está nos precatórios, mas na incúria dos administradores, diz Arida
“O governo deveria ter se preocupado com essa questão desde o primeiro dia, e não deixar para a última hora quando o problema ganhou a magnitude atual”.
O economista diz que assim como os precatórios, o pagamento do Auxílio Brasil também é inadiável. “O que não pode é deixar aprovar emendas que ampliam os gastos com novas despesas”, afirma.
“Gestão pública é, antes de mais nada, gestão de pessoas. Existem muitos funcionários públicos muito competentes, e a primeira providência de um bom gestor é cercar-se de bons funcionários”.
Sobre a alta da inflação, ele diz que o mais preocupante são as eleições. “O que o Brasil precisa para acertar o rumo é, primeiro, de um presidente que saiba acertar o rumo.”
E acrescenta: “O começo da solução é ter liderança. Uma empresa em situação difícil, para melhorar, começa trocando o presidente”.
Sobre o futuro da economia, ele destacou a importância das expectativas. “O risco de um péssimo presidente cria péssimas expectativas. Precisamos de liderança política. Tem um caminho errado, com certeza, que é reeleger Bolsonaro, é o caminho do desastre. O governo cavou seu próprio buraco, já contratou uma recessão para o ano que vem. Não dá mais tempo de mudar. O destino do Brasil já está selado, e o governo está colhendo o que plantou.
Sobre a saída da pandemia, ele acredita que ainda há riscos causados por movimentos contra a vacina e também pelo desabastecimento, que causa rupturas na cadeia produtiva.
“Isso prejudica o mercado de petróleo e a oferta de componentes eletrônicos, que afetam a indústria como um todo. Outro aspecto é a inflação em economias que estão aquecidas, como os Estados Unidos. Temos um choque negativo de oferta e choque positivo de demanda, que causam pressões inflacionárias”.
Leia a íntegra da entrevista de Pérsio Arida à jornalista Sonya Racy
Como imagina que será o mundo pós-pandemia?
Coisa difícil de ser respondida. Quanto à pandemia, o que vimos é a surpreendente volta de casos em países europeus e no Leste asiático. A Holanda acaba de anunciar um lockdown, a Áustria impondo o lockdown aos que não se vacinaram, parte disso devido ao movimento dos “antivax”. Felizmente, o Brasil ultrapassou esse momento. O segundo aspecto, especialmente lá fora, é o desabastecimento, com rupturas na cadeia produtiva. A gente vê isso no petróleo, com preços muito altos, em chips, os carros no Brasil, como se fosse um choque de oferta negativo.
Sim, atingiu a economia no mundo todo.
Economias muito aquecidas. O que ocorre nos EUA é revelador, lá já tem pressão por ajuste de salários. Nas eleições americanas, há pouco, vimos a perda de apoio dos democratas por causa da inflação. A combinação de choque negativo de oferta e choque positivo de demanda provoca essas pressões inflacionárias.
Acha que foi um erro o governo americano ter derramado tanto dinheiro para aquecer a economia?
A avaliação de erros tem de ser sempre um ex-ante e um ex-post. O ex-post, olhando para trás, você diria que sim, exageraram na dose. Mas isso se corrige, ano que vem vai ter retração, o estímulo será menor. O Federal Reserve já começou a reduzir o ritmo de compra de títulos públicos do setor privado. Alguns economistas já alertavam, lá atrás, que a expansão válida para 2020 estaria excessiva para 2021.
No Brasil, houve esse exagero também?
Aqui a história é um pouco diferente. Você tem uma história das políticas fiscais e outra da política monetária. Na fiscal, depois da grande expansão do déficit em 2020, passamos a uma expansão menor. O BC adotou postura agressiva, reduzindo os juros para perto de 2%. Mas, levando em conta as incertezas que havia quanto à pandemia e a velocidade da recuperação, para mim, está longe de ter sido errada a ex-ante, entende? Então, não acho que o BC tenha errado quando colocou a taxa de juros em 2%.
E como você vê o atual debate sobre a questão do teto de gastos?
Vamos falar primeiro do Auxílio Emergencial e depois dos precatórios. Quando o teto de gastos foi criado, todo mundo sabia que, mais cedo ou mais tarde, haveria uma forte pressão para rompê-lo. A menos que se tomassem medidas para reduzir o volume de gastos obrigatórios da União. A União não fez nada, exceto congelar os salários dos funcionários públicos, nenhuma medida para criar espaços no teto de gastos. E aí aconteceu o óbvio, chegou-se a um limite desse teto.
E quanto aos precatórios?
A questão dos precatórios é de gerenciamento de riscos. Qualquer empresa, quando publica um balanço, é obrigada a lançar uma provisão para as ações que venha a enfrentar e perder na Justiça. O Ministério da Fazenda tem a Procuradoria, tem advogados que o defendem, tem a obrigação de antecipar essa provisão. Na última hora, é claro, você tem de pagar os precatórios, tem de dar auxílio aos mais pobres. Mas a obrigação do bom gestor é justamente planejar, antever. E tudo isso poderia ter sido feito. Aí vai ter gente achando que a culpa é do teto. Na verdade, é culpa da incúria dos administradores.
Diria que a pandemia afetou a capacidade de gestão do governo?
O que vejo é que as empresas do Brasil continuaram todas sendo geridas, assim como os governos estaduais e federal. Não vejo como a pandemia os tenha afetado. O fato é que contrair um volume de despesas obrigatórias para criar essa margem de gasto discricionário é algo que deveria ser preocupação de um governo desde o primeiro dia. Não se pode ficar de braços cruzados até o problema tomar a magnitude que tomou.
Estrago feito, o que fazer?
A primeira coisa é prestar atenção ao problema a ser contido. Uma coisa é pagar os precatórios, o mínimo a ser pago, dar o Auxílio Brasil. Mas você não pode aprovar emendas que ampliam o teto deixando o gasto para ser decidido depois.
Você esteve no governo, foi um dos autores do Plano Real, esteve em contato com a máquina pública bem de perto. Na gestão pública, é difícil agir e conseguir reação do tamanho que se deseja?
A gestão pública é antes de mais nada gestão de pessoas. Como em qualquer empresa, se você não tem um bom time não vai a lugar nenhum. Capital humano é crítico. Então, a primeira coisa é se cercar de bons funcionários. A segunda é flexibilizar a gestão, um trabalho muito mais delicado. A gestão pública tem frequentemente a responsabilidade de quem toma uma decisão. E gera uma situação em que as pessoas não querem assinar. Têm medo, entende? Então, é óbvio que precisa criar uma regra em que o gestor público que tome uma decisão vista, depois, como errada – um erro não intencional – não possa ser penalizado. Tem muita coisa que pode ser feita para tornar a gestão pública mais eficiente.
Me lembro que, já na sua época estavam tentando corrigir isso. E eu imagino que, na hora em que você saiu, tiveram muitos processos pelas costas…
Sim. Tive uns 20 e tantos processos, vários deles completamente absurdos. Cria-se uma situação em que você desincentiva as pessoas a trabalhar no setor público. Isso tem de melhorar. Precisamos criar condições para um gestor tomar decisões com segurança, e não criar uma cultura na base do medo, da punição ex-post. Esta, na verdade, penaliza o empreendedorismo dentro do setor público.
E quanto à questão da PEC dos precatórios? Alguns anos atrás o Estado de São Paulo tentou fazer algo nesse sentido. Mandou uma lei ao Congresso propondo mudanças, uma divisão, era algo como “as ações alimentícias devem ser pagas primeiro”. A proposta não passou. É uma coisa razoável?
Não. Tem de pagar os precatórios. Esse pagamento é moroso, porque temos um sistema Judiciário muito lento. Então, o que temos a fazer é ver o problema na raiz.
Aí tem outra coisa, o STF está abarrotado de ações inúteis. Tempos atrás, a ministra Cármen Lúcia nos disse que tinha chegado até ela uma ação sobre partilha do cachorro de um casal. É bem questionável que tal ação tenha ido parar no Supremo…
Há vários aspectos nessa questão da agenda do STF. Para começar, a sobreposição de uma agenda criminal, por conta do foro privilegiado. A excrescência, aqui, é o foro privilegiado para todo mundo, que abarrota o Supremo de ações criminais. Tem gente demais com foro privilegiado.
Corrigido isso, já haveria um afunilamento…
E segundo, há uma quantidade grande demais de agentes habilitados a propor ações perante o Supremo. Associações de classe, todos os partidos políticos… E terceiro, o Supremo é a autoridade para assuntos constitucionais. Se a Constituição só tivesse princípios básicos, o volume de questões seria bem menor. Mas como ela é detalhista, inúmeras questões encontram abrigo, um gancho, na Constituição e acabam sendo levadas ao Supremo.
Desde que comecei na profissão vejo o País convivendo com problemas na infraestrutura, na educação, na saúde… Por que o Brasil encalha sempre nos mesmos desafios?
É uma questão difícil de responder, profunda e ao mesmo tempo complexa…
É um problema cultural, psicológico, falta de vontade? E agora está voltando a inflação. Isso te preocupa?
Sim, preocupa, mas, muito mais do que a inflação, me preocupam as eleições. Primeiro o Brasil precisa, para acertar o rumo, ter um presidente que saiba como acertar o rumo, entende? Que tenha a clareza dos problemas. Gente competente atrai gente competente. Se tiver um bom presidente, você monta uma ótima equipe.
O ruim não contrata o bom.
Sim, tem de começar com um bom presidente, um bom Congresso – e é difícil imaginar um bom Congresso com as distorções que a gente tem. A eleição presidencial, sim, faz uma enorme diferença. O começo da solução é você ter liderança. É fácil imaginar que no ano que vem o Brasil vai ter crescimento perto de zero. Que a inflação vai estar um pouco mais baixa e a taxa de juros mais alta. Mas o País com uma expectativa de um ótimo presidente a ser eleito em outubro é diferente da perspectiva de um péssimo presidente. Nesse aspecto, estamos a pé, não é a modelagem econômica…
Vamos falar um pouco do Plano Real. Era uma ótima equipe, e vocês criaram lá um mecanismo, a URV, que ninguém acreditou que daria certo e deu. Hoje, acha que existiria um “Plano Real do Crescimento”?
A coisa do Plano Real, de derrubar subitamente a inflação, é tão espetacular, mas não dá para replicar em outras áreas. A equipe teve méritos, mas houve também uma espécie de pacto social tácito em torno do objetivo. E ali havia liderança política. Eu fico muito orgulhoso do plano, a parceria com o André Lara Rezende, com os colegas de equipe, mas o essencial é a liderança política. É por isso que digo: o ponto em que o País pode pegar o caminho certo – ou não – será na eleição presidencial. Tem o caminho errado, que é reeleger o Bolsonaro. O caminho certo… Temos de esperar um pouco para ver.
Acha que é possível o Brasil quebrar?
Não, as pessoas se apavoram com a ideia, mas o Brasil não vai quebrar. Quando se fala em quebrar, estamos falando da dívida pública, e a incapacidade de pagá-la é de fato um evento catastrófico. Mas o “x” do problema é o teto de gastos. Por que precisamos dele? Porque, sem o teto, o governo vai gastar muito mais e pior, vai gerar distorções ainda maiores. Basta ver para onde vão as emendas de relator – que é o jeito que se usa quando não se quer ser visto pelo público.
É o orçamento secreto…
Sim, o orçamento secreto. Pode ter certeza de que a produtividade de investimento aí é nenhuma, se não for negativa. Se tirassem hoje o teto de gastos, sabe o que aconteceria? Um enorme reajuste do funcionalismo público. Claro que não se pode congelar salários do funcionalismo para sempre, mas essas coisas têm de estar no bojo de uma política diferente da atual.
O que o governo poderia fazer contra isso nos meses que tem aí pela frente?
Quanto aos meses pela frente, o governo cavou seu próprio buraco. Uma péssima gestão econômica, que já contratou um panorama recessivo para o ano que vem. E não adianta resolver de uma hora para outra mudar, estamos em novembro e tem eleição no ano que vem. O governo vai colher o que plantou no ano que vem.
Que não será verde…
Não será. Acho que a única forma de ter um 2022 melhor é imaginar que esse governo vai acabar e entrar outro melhor.
Sobre economia verde, em Glasgow, o País deu sinais de que caiu a ficha?
O Brasil foi um vexame nessa matéria, virou um pária quando deveria ser modelo para as relações internacionais. Foi na contramão do mundo.
Mas o acordo do crédito de carbono assinado veio para ficar. A moeda vai alavancar o meio ambiente no Brasil?
Sim, veio para ficar. Ter um mercado é sempre melhor do que não ter, não é? Cria-se um mercado de carbono, excelente. Aí vai ainda precisar de regulamentação, de trabalho…
Ante a tudo isso, qual o seu olhar, hoje, sobre o futuro?
Do futuro ninguém sabe, mas de uma coisa tenho certeza. Se formos capazes de eleger um bom presidente, em 2023, o País vai encontrar seu caminho. Se perdermos essa chance de mudar, vai ficar muito difícil.