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Joaquim Levy

Infraestrutura digital e equilíbrio fiscal

Boa governança digital pode fortalecer gestão fiscal sem prejuízo da privacidade ou direito das pessoas

Apesar de ainda longe do radar do mercado, fortalecer a governança da nossa infraestrutura digital pública pode melhorar a qualidade das políticas públicas e dos indicadores de satisfação das pessoas cobertas por elas

Apesar das despesas da Previdência Social como proporção do PIB em 2023 (8,3%) terem sido menores do que em 2019 (8,5%), o governo federal enfrenta um desafio fiscal decorrente de várias medidas legislativas de caráter estrutural tomadas nos últimos anos. Destacam-se a ampliação do Bolsa Família em 2022 (+R$ 100 bilhões), emendas parlamentares (+R$ 40 bilhões), transferências para o Fundeb (+R$ 25 bilhões) e cobertura de obrigações subnacionais, como o piso dos enfermeiros (+R$
10 bilhões) e contribuições das prefeituras para o INSS (+R$ 10 bilhões). Além disso, há distorções persistentes, como a forma peculiar de se constituírem direitos na previdência rural.

Não é viável enfrentar os desafios fiscais apenas endereçando benefícios tributários ou liberalidades decididas pelas cortes desde 2017. Por isso são notáveis os recentes sucessos em encerrar favoravelmente contenciosos como a “aposentadoria da vida inteira”, a incidência de PIS-Cofins em algumas atividades e a remuneração do FGTS. Derrotas aí poderiam ter custado centenas de bilhões de reais aos cofres públicos.

Chegar ao superávit recorrente de 1% do PIB necessário para o arcabouço fiscal (LC 200-2023), para permitir a diminuição da dívida pública, representa um esforço de R$ 120 bilhões e terá que contar com melhoras em três vertentes. A primeira é se perseguir uma taxa de crescimento do PIB de pelo menos 2,5% para gerar arrecadação sem novos impostos, contando com o auxílio de reformas microeconômicas, clareza regulatória para se aproveitar as vantagens do Brasil na transição energética e uma gestão macroeconômica favorável ao investimento privado. A segunda é a racionalização dos benefícios tributários, inclusive a embutida na Reforma Tributária do IVA.

O terceiro pilar do fortalecimento fiscal é alinhar a expansão do gasto público à prescrição do arcabouço. Esse alinhamento exige disciplina para não se inventar novos programas, especialmente antes de avaliar e ajustar os existentes, e informação para melhorar o direcionamento do gasto público. É aí que a governança da infraestrutura digital pública tem um papel crucial.

A infraestrutura digital é cada vez mais essencial para o funcionamento e transformação dos governos e sociedade, como enfatizado pela Índia durante sua presidência do G20 e como começa a ser discutido, por exemplo, pelo Bretton Woods Committee no contexto da reforma das instituições multilaterais. No Brasil, temos exemplos no Pix, pagamento do Bolsa Família e outros benefícios, declaração do imposto de renda, e e-governo, inclusive com o e-social. A boa governança dessa infraestrutura pode fortalecer a gestão fiscal sem prejuízo da privacidade ou direito das pessoas. Com ferramentas adequadas, ela pode ainda servir para avaliar o resultado final dos programas (análise do gasto) e não apenas a conformidade com a lei.

Um exemplo de governança da infraestrutura digital está no cruzamento dos dados dos beneficiários do Bolsa Família. Ele se tornou chave ao se afrouxarem as regras do programa em 2022, o que fez crescer o número de famílias unipessoais e injetou incentivos distorcidos no sistema, posteriormente corrigidos. Sem ruído, o governo fez a triagem de milhões de famílias nos últimos 15 meses, sustando milhões de benefícios unipessoais, o que permitiu atender a fila do Bolsa Família usando o mesmo orçamento. Esse trabalho não está concluído e deve ser acelerado, até para o Bolsa Família poder absorver o programa Pé de Meia, que hoje tem uma fonte de financiamento precária.

Boa governança digital pode fortalecer gestão fiscal sem prejuízo da privacidade ou direito das pessoas

A governança digital é indispensável na Previdência para que, por exemplo, a agilidade na concessão de auxílios-doença se traduza em mais qualidade para o beneficiário, sem explosão do gasto. Ela tem que ser reforçada para lidar com a crescente litigância e judicialização das demandas por benefícios previdenciários e assistenciais no pós-2017. Hoje há ferramentas que facilitam a identificação de padrões, legítimos ou não, que podem ser trabalhados para direcionar os recursos para quem tem direito, sem vazamento do gasto. A intensificação do uso dessas ferramentas e a troca de informações entre ministérios, incluindo a Advocacia Geral da União, é urgente, para que o recente salto nos benefícios seja transitório e o gasto previdenciário e assistencial (BPC) não sobrecarregue o arcabouço.

A governança digital da Previdência pode ser complementada com medidas simples. É o caso da previdência rural, criada há meio século com caráter assistencialista para cuidar do estoque de idosos de um setor “atrasado”. Hoje a agricultura é outra e já é tempo que sejam exigidas contribuições documentadas para a formação do direito à aposentadoria rural, como se dá com a previdência urbana, em que décadas da vida contributiva das pessoas estão disponíveis para consulta on-line. O trabalhador do campo, inclusive o pequeno produtor, deve ter suas contribuições registradas mensalmente daqui para frente.

A governança digital vai além da questão das transferências, como ilustrado pelo monitoramento das florestas, que somado à coordenação de recursos permitiu diminuir o desmatamento da Amazônia em 50% no último ano e meio. A integração de bancos de dados, incluindo cartórios e Incra, pode estimular o investimento na Amazônia, com a regularização fundiária. O mesmo se dá com o rastreamento do gado, essencial para preservar mercados externos. Se as mudanças metodológicas no e-social forem melhor entendidas pelos economistas, ele também pode ajudar a iluminar o mercado de trabalho, com a RAIS eventualmente permitindo estudos longitudinais e outras análises.

Apesar de ainda longe do radar do mercado, fortalecer a governança da nossa infraestrutura digital pública, inclusive no que toca à disponibilização regrada de dados para o público (e empresas) pode melhorar a qualidade das políticas públicas e dos indicadores de satisfação das pessoas cobertas por elas, com benefício para a dinâmica fiscal, o investimento privado e a segurança e bem-estar das pessoas.

  • Publicado originalmente no Valor Econômico.

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Joaquim Levy é diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados no Banco Safra. Ex-Ministro da Fazenda, Levy é engenheiro naval pela UFRJ, mestre pela FGV e PhD em economia pela Universidade de Chicago. Tendo sido CFO e Diretor Gerente do Banco Mundial e Vice-Presidente de Finanças do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ele foi Presidente do BNDES e Secretário do Tesouro Nacional do Brasil, além de ter trabalhado no mercado financeiro, tendo sido responsável por uma das principais gestoras de ativos do país.

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