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Joaquim Levy

As Soluções Baseadas na Natureza em Glasgow

Os contornos de um mercado de carbono brasileiro já estão definidos e podem gerar empregos e garantir avanços na redução de emissões, favorecendo diferentes setores

Amazônia vista de satélite

Deterioração dos remanescentes da floresta e o aquecimento atmosférico têm levado à morte prematura das árvores no sudeste da Amazônia | Foto: Getty Images

Os riscos climáticos podem ser classificados entre físicos e de transição. Os primeiros derivam do impacto das mudanças de temperatura, regime de chuvas, altura do mar, etc.  Os outros têm a ver com mudanças tecnológicas ou regulatórias.

A agricultura brasileira está sujeita aos dois tipos de risco. Alterações na floresta amazônica em decorrência do aquecimento global, aceleradas ou não pelo desmatamento, são riscos físicos que afetarão os regimes de chuva do centro oeste e demais regiões produtoras do país. 

Alterações na floresta, inclusive a possível incapacidade dela se recompor, podem já estar acontecendo. Estudos recentes[i] sugerem que a deterioração dos remanescentes da floresta e o aquecimento atmosférico têm levado à morte prematura das árvores no sudeste da Amazônia, quebrando o equilíbrio entre absorção e emissão de carbono pela floresta para além do efeito do desmatamento e incêndios criminosos. 

Mas, os riscos de transição são provavelmente mais imediatos. É o caso dos incentivos à produção de proteínas em laboratórios e outras pressões motivadas pela associação da pecuária e mesmo da lavoura a riscos climáticos.

As proteínas de laboratório ainda não resultam em comidas apetitosas, apesar da celebração de hamburgers artificiais.  A carne moída não tem o apelo da carne inteira, para quem pode pagar por um bife. Mas, preço e acessibilidade costumam ter impacto na dieta das populações.  Já é popular a noção de que a transição da caça para os grãos não se deu sem fricções ou prejuízo à saúde das pessoas, como até as múmias testemunham.[ii]  Mas a maior produtividade da agricultura transformou a humanidade, deslocando as economias que viviam da caça e renderam-se, contava-se, por um prato de lentilhas. Essa concorrência não deve, portanto, ser desprezada, até pelo capital investido nela e no seu marketing.

O segundo risco de transição é de natureza regulatória. A dificuldade de os frigoríficos demonstrarem que a carne que vendem não se origina em áreas desmatadas depois de 2008 cria embaraços cada vez maiores para a exportação e o relacionamento com investidores. Para enfrentá-los, a cooperação de alguns governos estaduais, que começam a dar acesso às guias de transporte de animais (GTAs) para facilitar o rastreamento das crias, registros em blockchain e uso da AI têm dado mais credibilidade ao compromisso dos grandes frigoríficos de resolverem esse problema.  Sucesso nessa empreitada é indispensável para preservar os mercados lá fora, porque até a China começa a prestar atenção à sustentabilidade do que consome. O que já deveria estar acontecendo aqui também, nas nossas escolhas diárias.

Em paralelo, teremos que lidar com as emissões entéricas dos ruminantes, que são maiores do que a soma das emissões brasileiras da indústria, transporte e resíduos sólidos juntas. Aí também tem havido progresso para se compensar emissões bovinas com o sequestro de carbono no solo e em árvores plantadas nos pastos. Essas árvores dão conforto aos animais e podem ser fonte de renda para o agricultor, se houver um aumento da demanda por madeira plantada, por exemplo, na construção civil.

Para aumentar o valor monetário dessas ações e evitarem-se sanções comerciais ao país, a redução de emissões delas decorrentes precisa ser medida de forma acurada, robusta e transparente, como já notou o ex-ministro Roberto Rodrigues.  Padrões bem estabelecidos serão necessários para demonstrar a captura de carbono no solo. Ou aquela obtida pela regeneração natural das áreas liberadas com a intensificação da pecuária e sua integração à atividade agrícola ou ao plantio de espécies permanentes, inclusive frutíferas, na Amazônia e em outros biomas. 

Investidores já começam a criar uma demanda por medições e padronização, atividades que merecem também contar com o apoio do governo (e.g., Embrapa). Elas são parte da infraestrutura indispensável para rentabilizar o investimento na maior sustentabilidade da nossa economia. Algo no que um mercado de carbono também teria papel relevante.

Os contornos de um mercado de carbono brasileiro já estão definidos no Substitutivo do Projeto de Lei 528/2021, que propõe a criação do Sistema Nacional de Registro de Compensações de Gases de Efeito Estufa (SNRC) e do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE). Enquanto o primeiro sistema visa dar transparência e integridade ambiental e social à oferta de créditos de carbono, o segundo cria incentivos para o atingimento de metas de redução de emissões em vários setores da economia, especialmente na indústria.

Juntos, os dois sistemas estabelecem uma governança climática flexível para abrigar as rápidas alterações regulatórias dos mercados de carbono, e tornam subsídios menos necessários para estimular nossa capacidade e vantagens em reduzir a emissão de gases de efeito de estufa. Facilitam assim, transformá-las em fatores de desenvolvimento inclusivo. Seu desenho contou com a contribuição de várias entidades empresariais e especialistas como Ronaldo Seroa da UERJ, a partir da iniciativa do Deputado Marcelo Ramos, atual vice-presidente da Câmara de Deputados. A aprovação do projeto antes da COP 26 sinalizaria o compromisso do País com as metas de emissões líquidas de carbono zero, ajudando na discussão internacional da nossa pauta de interesses.

Ainda que não ocorram grandes decisões em Glasgow, temos interesse em que nossas soluções baseadas na natureza—inclusive os biocombustíveis para aviação, siderurgia e transportes eletrificados—sejam acolhidos nos sistemas globais de comércio de carbono. Também será importante integrar nesses sistemas o sequestro de carbono em florestas e no solo, reduzindo a dependência da proteção da floresta a esquemas voluntários como REDD+. Todas essas iniciativas são caminhos para criar emprego no Brasil.

* Publicado originalmente no jornal Valor Econômico


[i] Gatti (2021) no volume 595 da revista Nature, e Brien (2015) no volume 519

[ii] https://www.proteinpower.com/nutrition-and-health-in-agriculturalists-and-hunter-gatherers/


Joaquim Levy é diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados no Banco Safra. Ex-Ministro da Fazenda, Levy é engenheiro naval pela UFRJ, mestre pela FGV e PhD em economia pela Universidade de Chicago. Tendo sido CFO e Diretor Gerente do Banco Mundial e Vice-Presidente de Finanças do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ele foi Presidente do BNDES e Secretário do Tesouro Nacional do Brasil, além de ter trabalhado no mercado financeiro, tendo sido responsável por uma das principais gestoras de ativos do país.

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