Os impactos do mundo Vuca (marcado por volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade) vêm desafiando cada vez mais as empresas interessadas em fortalecer o vínculo entre sua imagem e a identidade nacional. A estratégia baseia-se numa interação mais sólida entre certos traços de brasilidade e o imaginário organizacional, com foco no pertencimento e maior empatia com os stakeholders locais.
Pesquisadores e consultores versados em tais habilidades inspiram-se em trilhas de conhecimento empírico e teórico, de fontes nacionais e estrangeiras. Mas esse arcabouço conflita, em parte, com assimetrias decorrentes da heterogeneidade da cultura brasileira.
No geral, o senso comum nos rotula como um país do futebol, do samba e do carnaval. Mas, parafraseando-se um ícone da Tropicália, esse reducionismo não apreende a totalidade da “alma brasileira”, que vai muito além de afinidades eletivas com esporte e entretenimento.
Como sintetiza o título de um livro clássico da antropologia brasileira, somos uma “terra de contrastes”. Portanto, reitero neste artigo a necessidade de um senso crítico mais acurado sobre o uso recorrente de uma matriz teórica importada, quase hegemônica nas chamadas ciências da administração.
O modelo fundamenta-se principalmente em valores e pressupostos prospectados nos anos de 1980 junto a funcionários de 50 subsidiárias da IBM, em diversos países. O estudo, de autoria de um renomado pesquisador estrangeiro, tornou-se uma das principais referências para pesquisas sobre fatores estruturantes de uma hipotética cultura organizacional de perfil nacional.
Boa parte dessas pesquisas vem sendo revista por especialistas em estudos organizacionais, diante de suas inconsistências, sobretudo antropológicas. Uma das críticas mais assertivas questiona a eficácia desse suporte teórico-prático importado para avaliar a contextualização sociocultural do ambiente de negócios no Brasil.
Trata-se de uma ferramenta teórica pouco permeável às especificidades da cultura do país e, por isso mesmo, incapaz de desvendar a existência ou não de um estilo brasileiro de gestão, como sustentam alguns pesquisadores.
Em termos de crítica, me alinho ao artigo “Cultura organizacional: generalizações improváveis e conceituações imprecisas”, assinado pelos professores Rafael Alcadipani (FGV-SP) e João Marcelo Crubellate (UFM-PR).
O excelente texto publicado pela revista RAE 77, em 2003, problematiza, “por meio da perspectiva epistemológica pós-moderna, parte da produção nacional de pesquisas e estudos sobre cultura organizacional brasileira”, como sintetizam os autores na introdução.
Me inspirei nesse conteúdo para refletir sobre o desenvolvimento de uma possível terceira via de prospecção de traços da cultura brasileira capaz de facilitar a formatação de uma noção de cultura organizacional mais robusta.
Proponho enfrentar o desafio, ainda em aberto, de como identificar, sistematizar e ordenar em categorias específicas os antigos e novos significados socioculturais típicos do Brasil. E mais: por meio deles, construir uma espécie de código decifrável e representativo da brasilidade.
O desafio, claro, não é pequeno, considerando-se as peculiaridades étnicas, sociais e culturais do Brasil, bem como sua evolução histórica, acelerada por processos de aculturação. Há que se considerar também o perfil econômico diferenciado das organizações que constituem as cadeias produtivas instaladas em seu território.
A literatura econômica e sociológica dá conta de que, no chão de fábrica, o arcaico e o moderno parecem se complementar num dualismo macabro. Este constructo ainda abriga trabalho escravo, segundo o noticiário recente, já comentado neste espaço.
Por outro lado, a própria brasilidade é difusa, dada a inexistência de uma cultura brasileira hegemônica, o que, aliás, não é novidade. Teoricamente, a cultura assume uma diversidade de significados, considerando-se espaços, tempos e diferentes áreas do conhecimento.
Ou seja, o Brasil, assim como outros estados-nações, não dispõe de uma matriz, digamos, antropológica, que unifique seu pluralismo. Mas a cultura, em suas várias facetas, é perceptível através de diversas linguagens, discursos e representações manifestas e latentes, do Oiapoque ao Chuí.
Num dado momento, a cultura popular encontra-se com a cultura de massa. Esta, por sua vez, se cruza com a cultura erudita, formando um caldeirão disruptivo, como já se viu em periferias urbanas distintas de São Paulo, por exemplo.
Não é à toa, portanto, que “o Brasil se molda, se elabora e se define na vaga nebulosa de mito e verdade, de artesanato e eletrônica, de selva e cidade”, como descreveu o poeta Ferreira Gullar lá pelos anos de 1960.
Eis aí, então, o caminho das pedras para desvendar a brasilidade. Bora correr atrás da bola. Afinal, futebol também é cultura cantada nos versos do Skank. A banda mineira, recem-desfeita, transformou apupos e gemidos simbólicos de uma hipotética partida de futebol em poesia.