Desde que o agronegócio se tornou pop, impõe-se uma pergunta ainda sem resposta no imaginário da cultura organizacional brasileira. Trata-se de saber se os mitos e ritos de nossa herança rural fomentam inovações em cadeias produtivas fora do circuito da terra.
Em outras palavras, busca-se indagar se as tradições e valores da roça permeiam também a cultura organizacional de empresas do meio urbano, contribuindo para a melhoria de sua performance socioeconômica.
O propósito deste artigo é examinar até que ponto a ressignificação do pop amplia a esfera de influência da cultura country. Isso porque o autóctone presente em suas raízes é tido pelas elites como símbolo do atraso.
Nessa discussão, boa parte da tensão entre o arcaico e o moderno reside na interseção do campo com a atividade braçal, vista preconceituosamente como função típica da mão de obra servil, indígena ou negra.
Mas foi a identidade dessas etnias, algumas vindas de além-mar, que contribuiu para erguer os pilares da cultura popular, a mesma que suporta a brasilidade em muitas organizações, no campo e na cidade.
Traços e afinidades dessa cultura foram garimpados por representantes de diferentes facções de movimentos sociais que emergiram entre 1960 e 1980. Suas bandeiras eram alimentadas também pela resistência ao mandonismo político que acabou impondo sua hegemonia em 1964.
Os achados históricos desses “bandeirantes” pós-modernos, esculpidos de vivências do campesinato, subsidiaram a construção de uma utopia social. Ou seja, a caricatura antropológica de um Brasil dos brasileiros, pretensamente livre das amarras da indústria cultural nascente nas ondas da globalização.
Recortes dessa contracultura inspiraram estilos e tendências musicais, repercutindo também no teatro, na literatura e até nas telenovelas. Buscou-se, dessa forma, dar visibilidade a diversas dimensões da brasilidade, sob a égide de um romantismo político latente, porém transformador.
Mais recentemente, “os mediadores da cultura popular na cidade de São Paulo” desenvolveram a versão contemporânea da cultura popular brasileira. Mas, como já comentado neste espaço, em se tratando de cultura, não há consensos nem homogeneização conceitual.
A cultura popular mantém essa complexidade, conforme os “mediadores” abordados no livro Entre a beleza do morto e a cultura viva, da professora Maria Celeste Mira, livre-docente em Antropologia e Sociologia da Cultura pela PUC-SP. A obra resultou de ampla pesquisa empírica e teórica sobre a versão urbana do assunto.
Sob sua ótica, a cultura popular é um conceito de “extrema ambiguidade”, que incorporou outros significados baseados nas práticas e crenças dos novos intelectuais. Porém, ainda preserva traços do folclore, que não se coaduna com as dimensões culturais que se propagam na metrópole.
O folclore refere-se a uma realidade que ficou para trás, conforme definiu o sociólogo Florestan Fernandes, no limiar dos anos de 1980. Em sua concepção, é “a ciência do saber popular” que estuda “os grupos ‘mais atrasados’ nos povos civilizados”.
Mas a cultura popular é bem-vinda nas empresas, ao emprestar seu simbolismo para legitimar técnicas de gestão de pessoas ancoradas em valores tradicionais. É o que ocorre quando o RH se inspira em crenças e pressupostos típicos de determinadas regiões do país para fundamentar rituais e dinâmicas motivacionais.
O mesmo acontece com certas confraternizações religiosas, festas temáticas, artefatos e obras do patrimônio histórico. Nesse caso, ao se alinhar à defesa e à preservação desses bens simbólicos, a empresa acaba reforçando sua reputação e imagem perante os stakeholders.
A saga da balconista e do caixeiro-viajante é um caso típico sobre a influência da tradição caipira em uma bem-sucedida jornada de negócio. O assunto foi amplamente estudado em minha pesquisa de Mestrado em Ciências Sociais, também na PUC-SP, que resultou no livro Magazine Luiza – Negócio & Cultura.
O casal fundador da empresa, em 1957 – ela vendedora de loja e ele negociante andarilho –, criou as bases de um império varejista que ainda se comunica com uma linguagem carregada no R. O sotaque veio do berço caipira, onde a companhia nasceu, uma região do interior de São Paulo povoada por remanescentes de nossos ancestrais, incluindo índios e portugueses.
Eram homens e mulheres de perfil rústico, porém, solidários, adeptos de atividades coletivas, da convivência comunitária, apegados à religião e ao trabalho. Esses personagens serviram de espelho para a cultura organizacional do Magazine Luiza, em Franca, mas ainda sobrevivem no ambiente fluido da metrópole.
Hoje, diante da transformação do mundo contemporâneo, a cultura digital é que dá as cartas no jogo organizacional. Mas, em contrapartida, a tradição mantém viva a alma do negócio, que a companhia sempre fez questão de preservar, pois, como bem diz o poeta, “a gente não quer só comida”.