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Maroni João da Silva

Que o Brasil maiúsculo se imponha sobre a “vassalagem” no trabalho

Com o advento da responsabilidade social corporativa, pessoas que, devido a certas características identitárias, não eram “percebidas” pelos recrutadores de RH, se tornaram aparentemente “mais iguais”, na esteira da ascensão da diversidade enquanto fator de competitividade

Diversidade no trabalho

Mudança de comportamento das empresas em relação às camadas sociais menos privilegiadas não questiona as raízes estruturais das mazelas sociais | Foto: Getty Images

Recentemente quase três mil pessoas foram resgatadas, de norte a sul do Brasil, em condições servis, ressaltando o contraste entre a barbárie e a pós-modernidade na produção econômica do país. Como as vítimas eram terceirizadas, os patrões vêm alegando desconhecimento dessas práticas desumanas lideradas por seus parceiros indiretos.

Os episódios em questão podem ser analisados sob várias nuances, afora as implicações legais, ainda sub judice nos fóruns competentes. Um dos vieses é o da responsabilidade social corporativa mais ampla das empresas envolvidas, conforme objeto deste artigo.  

A priori, os demandantes dos “expatriados” deslocados de várias regiões para trabalhar em plantios de cana de açúcar, uva etc. eximiram-se do crime, mas não da conivência passiva diante de um processo de “vassalagem” de mão de obra, que vai além de desvios éticos e legais.  

Trata-se de uma excrescência pré-capitalista que, de um lado, reifica a precariedade das condições de trabalho e de renda. De outro, transforma o processo de inserção social numa armadilha a fim de perpetuar a desigualdade étnico-racial.   

No Rio Grande do Sul especificamente, o trabalho escravo estava incrustrado em um cluster produtivo de algumas das mais requintadas grifes nacionais de vinhos, cultuados pelo gosto e afinidade de consumidores de alto padrão.

Algumas dessas reputações ficarão marcadas pelo estigma do malfeito, mas é provável que os estragos sejam logo esquecidos. A região também é pródiga em forças discriminatórias e, sobretudo racistas, que ignoram a contribuição do trabalho e da cultura afrodescendentes para a construção social do Brasil, como um todo.  

Este é o ponto em que quero me ater, a partir de agora neste texto, com foco na diversidade. Sob essa perspectiva, torna-se cada vez mais recorrente a contradição entre o discurso pluralista de algumas empresas e as práticas retrógadas que vêm sendo denunciadas.

Diante de tal evidência, pergunta-se também, claro, em que Brasil estamos ou, para usar um jargão da moda: que país é esse. É lícito indagar ainda que padrão ou padrões de brasilidade norteiam a cultura organizacional dessas empresas bem como a percepção e a gestão da diversidade.  

As denúncias de trabalho escravo parecem apontar, de um lado, a existência de um brasil minúsculo que ainda convive, sem nenhum pudor, com o arquétipo da Casa Grande. Nesse país, a memória da senzala funciona como um puxadinho no imaginário organizacional de boa parte das empresas evolvidas nos crimes acima referidos.

Sendo assim, representações sociais de perfil estigmatizante em relação a trabalhadores negros, sintetizadas em metáforas como “bem-vestido”, “bem apessoado”, entre outros, vem legitimando, há anos, o racismo estrutural no mundo corporativo.

Não raro, “contaminados”, por esse tipo de preconceito, recrutadores de RH acabam não “percebendo” em candidatos negros atributos relacionados às competências e habilidades que são demandadas para determinadas funções e cargos de maior prestígio nas empresas.

Em suas práticas relacionais no dia a dia das organizações, as atitudes e comportamentos desses executivos em relação a candidatos negros passam da condição de racismo latente para manifesto por meio de decisões ou escolhas que os colocam em segundo plano, impondo e perpetuando a hegemonia branca nos quadros de pessoal de boa parte das empresas brasileiras.

De uns tempos para cá, particularmente com o advento da responsabilidade social corporativa, pessoas que devido a certas características identitárias, não eram “percebidas” pelos recrutadores de RH, se tornaram aparentemente “mais iguais”, na esteira da ascensão da diversidade enquanto fator de competitividade.

Contudo, a mudança estrutural no status social do negro na sociedade, face ao seu empoderamento e protagonismo nas empresas, atualmente, ainda está na dependência de lutas sociais específicas, haja visto que a responsabilidade social corporativa está sempre atrelada à cultura de negócio das empresas.

Por conta disso, a mudança de comportamento das empresas em relação às camadas sociais menos privilegiadas não questiona as raízes estruturais das mazelas sociais que se buscam “corrigir”, ancorados em slogan como “ser do bem”, “empresa cidadã” etc.

A meu juízo, são essas as questões que operam por detrás dos lamentáveis fatos envolvendo a existência de relações trabalhistas inspiradas nos horrores do tronco. Tomara que as reflexões aqui sintetizadas contribuam para apontar caminhos visando à construção social de modelos de organização mais inclusivas, de fato e de direito.

E mais: que sirvam de inspiração para extirpar o racismo estrutural não só do universo corporativo, mas também da sociedade como um todo. Espera-se também que nesse processo de mudança imponha-se a hegemonia do Brasil maiúsculo e com mais alteridade. Que assim seja.

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@maronisilva é jornalista, escritor, Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, sócio-diretor da Textocon, Comunicação & Cultura Organizacional, autor dos livros Magazine Luiza – Negócio e Cultura e O lado místico do comércio, além de coautor de Gestão de Pessoas no século XXI: Desafios e Tendências para além de modismos.

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