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Claudio L. Lottenberg

A beleza admite muitas imagens, e não só as perfeitas

Abuso de filtros de aplicativos de simetria facial pode afetar a autoimagem – mas a beleza está em aceitar-se

Casal de turistas tirando selfie na cidade do Porto, em Portugal, sem máscaras e sorrindo

Uso excessivo de filtros em fotos nas redes sociais pode afetar a autoimagem | Foto: Getty Images

Beleza, perfeição e simetria formam um amálgama difícil de desfazer. Cada um desses conceitos tem sua aplicação em um campo específico, mas é bem fácil que a menção a um acabe, mesmo tangencialmente, levando à combinação com algum dos outros – e não poucas vezes, de todos. Bastante recorrente é a combinação entre beleza e simetria – da qual alguns aplicativos, que oferecem filtros para compor a simetria facial, fazem amplo uso. As redes sociais, aliás, são um campo extremamente fértil para estimular a busca, por meios de ferramentas digitais, dessa característica física.

Mas simetria facial é tema de muita controvérsia. Há quem defenda que a simetria facial perfeita, uma correspondência especular ponto a ponto a partir de um eixo vertical dividindo um rosto ao meio, não existe. A evolução se encarregaria de levar essa simetria ao ponto mais preciso possível, mas imperfeições sempre restariam. Também há quem defenda que beleza e simetria não são sinônimos: seria preciso levar em conta a proporção – a harmonia que o conjunto forma, e isso não tem a simetria como pré-requisito indispensável. Não que seja absolutamente dispensável, no entanto. Como disse o astrônomo Carl Sagan, seria uma condição “necessária, mas não suficiente”.

Apesar dos questionamentos de caráter filosófico, essa preocupação com beleza e simetria conduz a discussões sobre autoimagem, autoestima e mesmo saúde mental – ainda mais em tempos como os atuais, em que fotografias estão incorporadas até às comunicações mais corriqueiras, para informar pessoas de praticamente tudo, da roupa para festa até as refeições. Passados cerca de dois anos e meio de pandemia, a ligação que se estabeleceu das pessoas com as telas e os apps de fotos, de teleconferência e outros impulsionaram os filtros – seja os divertidos, para combinar rostos a ilustrações coloridas e de personagens infantis, até os que simulam maquiagem, fundos de tela para reuniões e tantos outros usos, digamos, mais profissionais.

A questão da simetria foi tema de uma reportagem recente do jornal The New York Times, que lembrou os vídeos de Hannah Warling e Leslie Lizette Cartier, que tiveram, juntos, quase 15 milhões de visualizações – e nos vídeos, o que fazem é justamente alternar imagens de seus rostos aplicando filtros de simetria a uma e a outra metades, e os contrastes que se vê são bastante significativos. Houve críticas aos vídeos, que foram vistos como uma forma de humilhação por pessoas com assimetrias mais acentuadas nos rostos.

A identificação de simetria, perfeição e beleza tem uma longa história, que vem da Antiguidade grega e perdura em nossos dias – e acabou por criar injustiças, como discriminação por conta da aparência, pela criação de padrões de beleza inatingíveis. O efeito se faz sentir na autoestima da pessoa. Pode gerar ansiedade, com o sentimento de que aquela assimetria, por menor que seja, tem de ser “corrigida” – sob risco de inadequação social, não aceitação e perda de oportunidades, ainda que nada disse tivesse qualquer concretude: a realidade disso tudo estaria apenas na sensação de que seriam reais. 

Claro que vivemos em uma sociedade muito ligada à imagem – e esta acaba influenciando escolhas, processos seletivos e acaba abrindo portas. Não é que o ideal de simetria seja em si negativo: a arte e mesmo a ciência têm nela uma raiz importante. Trata-se de uma ideia presente há tempo demais na psique humana para que se possa subtrai-la agora.

Mas exatamente por ser uma ideia que está aí a tanto tempo, já existe a noção de que a imagem do mundo real e a realidade de fato são distintas – e que faríamos bem em nos mantermos nesta última, ainda que com as ocasionais visitas ao lado da fantasia. Fazer uso de filtros dos aplicativos, em busca de alguma mudança em nossa aparência, não tem nada de errado em si. A questão é não ir do uso ao abuso. O abuso é até, de certa forma, fácil de reconhecer, na forma de diversas formas de discriminação ligadas à aparência. Estereótipos do que seja a beleza estão sendo desconstruídos também com o uso desses recursos digitais, o que serve como estímulo a que se veja a beleza da e na diversidade. Afinal, como teria dito a estilista francesa Coco Chanel, a beleza começa quando decidimos ser quem somos.

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Claudio L. Lottenberg é mestre e doutor em Oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina (Unifesp), presidente do Instituto Coalizão Saúde e do conselho do Hospital Albert Einstein

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