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Maroni João da Silva

Para sorte da democracia, alguns têm fé de mais; outros, fé de menos

Livro ‘O lado místico do comércio’ expõe como três grandes varejistas construíram modelos de negócios em que a racionalidade econômica dialoga com o simbólico

Reunião corporativa

Empresas se reinventam movidas por elementos como valores, normas, crenças, símbolos, mitos e ritos | Foto: Getty Images

Nunca se falou tão mal de ideologia como ultimamente. Aos olhos de muitos, essa expressão parece encarnar uma doença contagiosa, que propaga o vírus da desavença entre indivíduos, em seus mais diversos papéis na sociedade.

Mas esse diagnóstico precoce implica a compreensão parcial de sua essência, causas e efeitos. Da mesma forma, encobre outras mazelas que corroem a interação em organismos socialmente vivos, como empresas e organizações em geral.        

Por meio deste artigo, busca-se evidenciar aspectos difusos que permeiam as entranhas de certas narrativas sobre ideologia. Na prática, são fake News que distorcem a percepção de interesses que estruturam tais narrativas, bem como sua interface com as contradições do status quo.

Por outro lado, olhares multidisciplinares apontam para o perfil volátil do conceito de ideologia. Isso significa que não há como apreendê-la em sua totalidade, como se dois mais dois fosse sempre igual a quatro.  

A priori, estamos nos referindo a um ethos sintetizado em um conjunto de valores e significados socioculturais naturalizados e apregoados por setores dominantes. Na maioria das vezes, tais representações são respaldadas por um credo, ou seja, uma visão de mundo hegemônica.

Para que toda essa miscelânia de ideias e saberes faça sentido, há que se deslocar a abordagem de ideologia para um campo social específico. Nada mais adequado, portanto, que trazer o assunto para a arena empresarial onde, aparentemente, reina o paradigma da racionalidade.

Mas um olhar mais aprofundado para as nuances que estruturam e dão sentido ao jogo organizacional, evidencia que a lógica, por si só, não dá conta da gestão na pós-modernidade. Ademais, se atentarmos rapidamente para a sociologia das organizações, conclui-se que elas são, no mínimo, complexas e ambíguas.

Por exemplo, quando os indicadores de produtividade dos japoneses surpreenderam os concorrentes norte-americanos, nos anos de 1970, ficou claro que os samurais tinham um curinga. E não era a espada.  

A rigidez da linha de montagem fordista foi duramente nocauteada pela emergente cultura corporativa nipônica. Logo, a decantada administração científica se viu forçada a recorrer aos fundamentos da Antropologia, para o bem do capital.

Em consequência desse movimento, a equação produtiva sintetizada em fatores como terra, capital e trabalho foi acrescida do RH, mediador do conhecimento intangível, com foco no desempenho. Em outras palavras, o simbólico entra em campo.

Sob a perspectiva organizacional, a empresa se reinventa, movida por elementos como valores, normas, crenças, símbolos, mitos e ritos. Com isso, o discurso da racionalidade é relativizado por meio da visão holística do ser humano.

Não por acaso, criou-se o slogan da empresa cidadã, que assume o desafio de colocar em prática um imaginário organizacional com menos rigidez hierárquica e mais pluralismo. Nesse caso, estruturas participativas, equipes autogerenciadas e o autodesenvolvimento permeiam a cultura organizacional.

Mas, apesar das concessões, a empresa não abre mão, claro, de seu objetivo estratégico de produzir riquezas e gerar lucro. Os novos mitos institucionais acima referidos assumem o duplo papel de inspirar e motivar os funcionários, despertando sentimentos e emoções que os instigam a dar o melhor de si, revivendo uma versão pós-moderna da ética protestante.

O meu livro, “O lado místico do comércio”, lançado em 2020, pela Appris Editora, é um exemplo acabado da temática exposta neste artigo. A publicação resultou da pesquisa de Doutorado em Ciências Sociais na PUC-SP, e expõe, em detalhes, como três grandes varejistas do Brasil, construíram, ideologicamente, modelos de negócios em que a racionalidade econômica dialoga com o simbólico.  

Por meio de três portas de entrada da religiosidade, instituiu-se nas companhias em questão uma ética favorável à criação de um capitalismo humanizado. O novo ethos funciona como uma ideologia, segundo a qual, prosperidade econômica e bem-estar social – grande aspiração dos trabalhadores de classe média – são fruto da mesma moeda.

O novo modus operandi dos negócios, marcado inclusive pelo discurso da diversidade, mostra que as atitudes e comportamentos dos funcionários são sancionadas, motivadas e estimuladas por uma força oculta, porém, sempre pronta para vigiar e punir. 

Como se vê, quando associados a religião e negócios, os ritos de sociabilidade se prestam tanto a estimular produtividade como a criar ideologias, algumas espúrias. Mas para sorte da democracia, alguns tem fé de mais e outros, fé de menos.

Boa leitura.   

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@maronisilva é jornalista, escritor, Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, sócio-diretor da Textocon, Comunicação & Cultura Organizacional, autor dos livros Magazine Luiza – Negócio e Cultura e O lado místico do comércio, além de coautor de Gestão de Pessoas no século XXI: Desafios e Tendências para além de modismos.

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