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Maroni João da Silva

Tolerância zero para a intolerância de qualquer tipo

A desconstrução do entulho da desigualdade envolve uma força-tarefa que se cruza com as estratégias de direitos humanos – uma novidade no organograma de muitas empresas, dentro e fora do Brasil

Lula sobe a rampa

Criança negra, indígena, operário, professor, cozinheira e uma pessoa com deficiência, ativista na luta anticapacitista , sobem a rampa com Lula representando o povo brasileiro| Foto: Ricardo Stuckert

O pluralismo sociocultural manifesto na subida da rampa do Palácio do Planalto, durante a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, abre espaço para questionar se a diversidade praticada pelas empresas retrata o Brasil de fato, que acaba de se reencontrar consigo mesmo.

Pelo que se viu, o ritual de passagem da faixa presidencial deu protagonismo a personagens que muitas vezes permanecem “invisíveis” perante a responsabilidade social corporativa. Com isso, colocou em xeque a conformidade entre o discurso institucional e a eficácia social da cidadania empresarial.

Da mesma forma, a bricolagem sociocultural estampada nas identidades de alguns dos segmentos que adentraram o palácio evidenciou outra assimetria cultural. Ou seja: o meio termo entre o arcaico e o moderno não serve mais como paradigma da brasilidade incorporada por boa parte das culturas organizacionais.

Em grande medida, suas dimensões foram superadas pela dinâmica sociocultural que impulsiona nossa sociedade contemporânea. Parte desse movimento está alinhado com o novo contexto da globalização, em que alguns pressupostos da cultura foram ressignificados, inclusive com foco na otimização do desempenho econômico.

Já o caráter reformista de flexibilizações hierárquicas capazes de empoderar pessoas e quebrar entraves a ascensão social se esgota no uso da diversidade como diferencial competitivo. O que mais interessa às empresas é seu potencial de fomentar soluções inovadoras via compartilhamento de ideias.

Vale ressaltar que, desde Taylor, dois pressupostos passaram a nortear, com maior ênfase, a trajetória das empresas na modernidade. Trata-se da racionalidade e eficiência, conforme enfatizam estudos acadêmicos sobre como o mercado global “escolhe, recorta e interpreta” a diversidade.

Por conta dessa nova perspectiva, na pós-modernidade, tais conceitos ensejaram também a ressignificação da diversidade. Sua função reestruturante foi relativizada pela nova cultura de negócios, visando potencializar resultados.

Além disso, é recorrente em muitas empresas, a existência de focos de resistência a mudanças, articulados por grupos leais a lideranças de perfil tradicional. Apoiadas nesse mecanismo de disputa social, tais pessoas reforçam o poder de segmentos favoráveis a manutenção de feudos, no interior das organizações.

Há também barreiras de perfil simbólico contrárias ao pluralismo nas organizações forjadas por uma espécie de “Jeitinho Brasileiro” incrustrado na gestão de RH. Trata-se de metáforas do tipo “bem-vestido”, “bem-apessoado”, que reproduzem a discriminação latente no mundo corporativo, principalmente em relação aos negros.

Sua prática depende da mentalidade de alguns gestores que, por vezes, reinterpretam a cultura organizacional e os significados que sustentam a diversidade. Com isso, fomenta-se um modelo de recrutamento de novos quadros de pessoal, segundo suas próprias crenças e valores.

Por trás dessas atitudes há também objetivos não revelados, como por exemplo, manter o status quo favorável à hegemonia branca no comando de postos-chaves nas empresas. A estratégia também contribui para naturalizar o lugar que parte da sociedade brasileira reserva aos não brancos, mulheres, portadores de necessidades especiais, representantes de LGBTQIA+ etc.

Essa estratificação vem se alterando, felizmente, por meio da tão propalada inclusão social facilitada e implementada por empresas e algumas instâncias do setor público. Mas a meu ver, esse tipo de acolhimento funciona, às vezes, como uma faca de dois gumes.

Ou seja: ao mesmo tempo em que empodera seletivamente determinadas minorias sociais, opera também como uma cortina de fumaça sobre os efeitos perversos da desigualdade e discriminações em geral.

Em outras palavras, a visibilidade sustentada apenas em habilidades e competência técnica para ocupar determinados cargos, por si só, não gera mudança estrutural. Com isso, a mobilidade social vertical permanece como uma meta a ser atingida.

Pode até mesmo operar como uma armadilha contrária ao enfrentamento mais profundo da teia de significados orgânicos que mantém as amarras do preconceito étnico, de raça e de gênero, dentre outras formas de discriminação.

Frente ao que foi aqui abordado, pode-se dizer que, no frigir dos ovos – para usar uma expressão do senso comum – a inserção social corporativa opera como apaziguamento do conflito causado pela desigualdade ampliada.

A desconstrução desse entulho envolve uma força-tarefa que se cruza, inclusive, com as estratégias de direitos humanos – uma novidade no organograma de muitas empresas, dentro e fora do Brasil. Mas há esperanças de mudança estrutural nesse sentido.

Um bom começo talvez seja a ressignificação também dos discursos, como deixou claro, recentemente, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Sílvio Almeida, em sua fala emblemática, reafirmando o que classificou como óbvio.

Portando, celebremos, pois, as diferenças! Elas existem, de fato e de direito. Viva a diversidade e tolerância zero para a intolerância de qualquer tipo.

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@maronisilva é jornalista, escritor, Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, sócio-diretor da Textocon, Comunicação & Cultura Organizacional, autor dos livros Magazine Luiza – Negócio e Cultura e O lado místico do comércio, além de coautor de Gestão de Pessoas no século XXI: Desafios e Tendências para além de modismos.

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