Uma nova velha teoria, e objeções às velhas novas teorias. É o que John Cochrane traz à mesa no seu novo livro “The Fiscal Theory of the Price Level” (A Teoria Fiscal do Nível de Preço), a ser publicado no segundo semestre, e já disponível online.
A obra do pesquisador da Hoover Institution da Universidade de Stanford e antes professor da Universidade de Chicago desenvolve ideias de economia monetária nascidas há três décadas, mas que ainda necessitavam da unidade de um livro, e promete trazer nova luz ao debate sobre inflação. (Por transparência: John foi um dos meus orientadores em Stanford).
O que é a teoria fiscal do preço? O pilar central da teoria fiscal é que o valor da moeda advém do fato do governo aceitá-la como forma de pagamento de impostos, como se dissesse: “Aqui está um pedaço de papel, trate de ter alguns para me pagar seus impostos.” Assim, trabalhamos ou vendemos bens valiosos para obter esses pedaços de papel.
Se o governo não puder removê-la de circulação com impostos – mais precisamente com superávits de impostos sobre despesa -, a moeda perde seu valor.
Na prática, uma vez que a dívida pública se resgata em moeda, o nível de preço reflete o tamanho da dívida pública relativo ao valor esperado de superávits primários futuros. O paralelo com equity corporativo é instrutivo.
A percepção de superávits menores leva à inflação exatamente pelo mesmo mecanismo que a percepção de dividendos menores levaria, se usássemos ações da Petrobrás como moeda. Para determinar o nível de preços, não precisamos de “fricções”, um papel facilitador da moeda ou rigidez de preços.
Ao determinar a taxa de juros, política monetária tem papel central na teoria fiscal. Um ótimo capítulo tratando de títulos de longo prazo mostra como ela pode determinar o “timing” da inflação. O livro também sublinha a importância de iterações fiscal-monetárias. Por exemplo,
apertos monetários só abaixam a inflação se tiverem suporte fiscal, uma vez que aumentam o gasto público com juros. (1)
Cochrane também dedica capítulos inteiros ao estudo de episódios recentes. Por exemplo, porque a expansão fiscal da COVID levou à inflação, mas o longo período de juros zero e “Quantitative Easing” nas economias avançadas, não.
As equações que traduzem a teoria são relativamente simples e transparentes. Boa parte da exposição é verbal. A larga escala de ideias, por vezes especulativas, mas sempre descritas no detalhe, demanda pausas na leitura para reflexão. Ainda assim, humor na proporção correta e
a escrita acessível que caracteriza John Cochrane suavizam a experiência, e o fluxo de pensamento raramente se faz sentir repetitivo.
A teoria fiscal é uma teoria nova? A epígrafe do livro mostra que não.
O trecho de A Riqueza das Nações de Adam Smith observa que o poder liberatório da moeda frente aos impostos lhe dá valor. Mas uma grande distância separa um princípio e 600 páginas de cuidadosa análise quantitativa de suas implicações. Além de Cochrane, a lista de economistas que ajudaram a desenvolver a teoria fiscal mais recentemente inclui nomes pesados da área, como Eric Leeper, Tom Sargent, Christopher Sims, e Michael Woodford. O livro se preenche desta longa trajetória intelectual.
A teoria fiscal é diferente? Versões modernas do Monetarismo e Novo-Keynesianismo dominam economia monetária desde a revolução das expectativas racionais do início dos anos Ambos apresentam fundamentações fiscais razoáveis, semelhantes à teoria fiscal, mas frequentemente postas em segundo plano. Um importante capítulo do livro argumenta que séries temporais sozinhas não podem diferenciar as três doutrinas, uma vez que suas equações são idênticas, em equilíbrio. (2 )
Fora de equilíbrio, elas se diferenciam, mas nós não observamos não-equilíbrios. Assim, o livro nos convida a analisar os mecanismos de formação de equilíbrio de cada teoria, sua razoabilidade e consonância com instituições existentes e comportamento humano. Por exemplo, o monetarismo se sustenta em clara diferenciação entre “moeda” e “títulos” e oferta limitada de moeda. Mas inovações financeiras constantemente expandem meios de pagamento e banco centrais não prestam atenção na oferta de moeda.
Modelos Novo-Keynesianos dependem que bancos centrais ativamente ajustem taxas de juros para que a inflação não flutue. Mas de 2008 até a COVID os juros estiveram travados pelo “zero lower bound” e a inflação esteve tão quanto ou menos volátil.
A lista segue, com aspectos amargos destes modelos levando a extensa discussão no livro de como constituem anomalias que economistas não podem ignorar indefinidamente. Nesse sentido, a teoria exposta por Cochrane, ao atribuir novo papel aos fundamentos fiscais, proporciona nova e coerente visão para se entender a inflação.
A teoria fiscal é uma boa teoria para o Brasil? Por experiência hiper-inflacionária, nós brasileiros sabemos bem como dívida pública e inflação se entrelaçam. O livro clarifica como taxas de juros mais altas podem levar a mais inflação, não menos, ao elevar os custos da dívida. O economista Eduardo Loyo descreve com precisão o mecanismo em artigo de 1999.
Episódios inflacionários mais recentes podem todos ser explicados pela teoria fiscal também, embora essa discussão eu tenha que deixar para outro dia. Em suma, por que você deveria ler A Teoria Fiscal do Nível de Preço? Porque é difícil imaginar as muitas mudanças que o livro advoga não acontecerem eventualmente.
Os problemas teóricos dos modelos monetários modernos e a precariedade dos seus muitos remendos estão a cada dia mais expostos. E porque a teoria fiscal do preço, precisamente enunciada por John Cochrane, supera esses problemas de maneira coerente e tecnicamente rigorosa.
- (1) Esta é a visão “ex-post”. A visão “ex-ante” é que juros mais altos diminuem o valor dos fluxos futuros.
- (2) Por exemplo, ao observar um nível de preço P, podemos entendê-lo como resultado de MV=PY e um
governo que ajusta superávits de modo a validar P (uma visão monetarista), ou como resultado da
valoração da dívida do governo ao passo que o banco central prove liquidez M de acordo com a
demanda do mercado (teoria fiscal).