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Água para todos exige investimento e gestão

Para Gesner Oliveira, governo deve usar novo marco do saneamento para atrair investimento privado em soluções ambientais

Gesner Oliveira

Ex-presidente do Cade e da Sabesp, Gesner Oliveira defende que país deve valorizar a água e adotar medidas para ampliar o acesso ao saneamento básico | Foto: AE

Doutor em economia pela Universidade da Califórnia, Gesner Oliveira já presidiu o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Sabesp. Hoje, dá aulas na Fundação Getúlio Vargas e atua como consultor.

Do alto de sua experiência, ele fala dos impactos que espera do marco regulatório do saneamento e como acha que o Brasil deveria valorizar a água e adotar com urgência medidas que permitam ampliar o acesso ao saneamento básico para a população.

Sem isso, explica ele, é difícil adotar políticas importantes e eficientes na área de saúde, como o combate ao coronavírus. A seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva a O Especialista:

O Especialista – Dia 22 de março se comemora mais um dia mundial da água. O Brasil tem motivos para comemorar, sobretudo com o marco regulatório do saneamento?

Gesner Oliveira – A aprovação do novo marco do saneamento foi um importante passo para resolver os problemas do setor. É provável que novos investimentos privados ajudem a superar os problemas. Porém, ainda é cedo para comemorar, os indicadores de água e esgoto são vergonhosos. Por enquanto, é possível constatar que o nosso maior manancial continua sendo nossa incompetência em não sermos capazes de oferecer e tratar a água, tampouco o esgoto, para todos os brasileiros. Se a implementação do novo marco for bem feita, é possível que a partir de 22 de março de 2033 o Brasil tenha motivos para celebrar o dia mundial da água, com a universalização dos serviços de saneamento. Até lá ainda há muito o que ser feito e pouco a ser celebrado.

Metade da população brasileira ainda não tem acesso a saneamento básico | Foto: AE

 Sabendo que mais da metade da população não tem esgoto tratado, e que temos uma perda em torno de 40% da água potável e 12 milhões de pessoas sem acesso a essa água de qualidade, de que forma é possível fazer uma política de saúde e conter a pandemia do coronavírus?

Para resolver estes problemas duas coisas são fundamentais: investimentos e boa gestão. O novo marco contribui para atrair os investimentos e melhorar a gestão dos serviços públicos, principalmente porque estimula a concorrência. Uma política pública que resolva os problemas do saneamento ajuda na prevenção de diversas doenças que são transmitidas por falta de água tratada ou acesso à coleta e tratamento de esgoto, por exemplo. Doenças como a diarreia por Escherichia coli disenteria bacteriana, febre tifoide, cólera, leptospirose, hepatite A, entre outras doenças.

Conter a pandemia de Covid 19 ainda é um desafio, mas um dos fatores que ajudaria a atenuar a proliferação do vírus é o hábito de lavar as mãos, que é inacessível para 12 milhões de brasileiros. É difícil, senão impossível, falar sobre uma política de saúde que contenha a pandemia do Covid-19, dado que a falta de saneamento básico facilita a proliferação do vírus. Além de impedir a higiene básica em diferentes aspectos, a falta de saneamento básico faz com que os indivíduos entrem em contato diariamente com coliformes fecais, transmitindo o vírus. Segundo o Instituto Trata Brasil, a parcela da população no Amazonas com acesso à água é de 81,1%, enquanto a de esgoto é de apenas 10%. A relação com a disseminação do vírus é evidente, a cidade de Manaus ganhou destaque pela contaminação e número de mortes por Covid-19. Além disso, é importante ressaltar que a disseminação de doenças pela falta de saneamento não está restrita à pandemia do novo coronavírus.

 Esse fenômeno em torno da água, de falta de atenção por parte dos políticos, que ao longo da história foi marcado pelo fato de que canalizar água e tratar esgoto não dava voto, porque na maioria das vezes a obra não aparecia aos olhos do eleitor, está acabando no Brasil ou o fato de enterrar cano está cada vez mais sendo percebido como algo vital do ponto de vista ambiental?

O investimento em saneamento não é e não deve ser uma prioridade do orçamento público. Em um momento de delicada situação fiscal, os escassos investimentos ficam ainda menores em áreas que não dão tantos votos. Por outro lado, alguns leilões de serviços de saneamento ocorridos inclusive durante a pandemia evidenciam que há um grande interesse do setor privado em atuar. Além disso, as empresas e os fundos de investimentos buscam cada dia mais aplicar recursos em soluções ambientais. É preciso que o poder público aproveite as condições criadas pelo novo marco para buscar nas parcerias público-privadas uma solução para a falta de recursos e para melhorar os serviços.

Crianças em favela de São Paulo: marco regulatório pode atrair investimentos | Foto: AE

Os problemas em torno da água são mundiais. Estima-se que haja desperdício de 32 trilhões de litros de água por ano no mundo, que 2 bilhões de pessoas ainda não acessem água potável e que, entre outras consequências, a cada 2 minutos uma criança morra por falta de saneamento. Como o mundo tem evoluído em relação a esse tema e quais seriam as alternativas?

A ONU estabeleceu em sua Agenda 2030 os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), e dentre outras metas está a água limpa e o saneamento universal. Existem alguns pontos que deveriam ser considerados como alternativas para melhor uso da água.  Em primeiro lugar, é importante considerar a inovação e eficiência da gestão na distribuição da água. E a participação de empresas privadas. 

É importante ressaltar, também, a importância da conscientização da população a respeito do tema, fazendo com que todos se responsabilizem pelo desperdício e a preservação desse bem natural. 

   Do ponto de vista dos critérios ESG, temos visto o interesse crescente de empresas nessas questões do meio ambiente, como o surgimento de fundos com foco em ESG, por exemplo, e o risco ambiental estando no topo das preocupações das lideranças mundiais. Como você situa o Brasil nesse sentido, em que etapa desse processo estamos e se falta muito ainda para atingirmos o grau de evolução mundial nesse sentido?

Na iniciativa privada o ESG já é uma realidade, as empresas e os investidores buscam produtos e serviços com um histórico que se adequem às condições de trabalho e meio ambiente. Apesar disso, ainda existe um longo caminho a ser percorrido. O assunto deveria ser aprofundado, principalmente sobre os ganhos econômicos que tais políticas trazem.

No caso brasileiro é preciso superar a narrativa de que o restante do mundo já desmatou e descuidou do meio ambiente e por isso também teríamos este direito. Por outro lado, é preciso que o resto do mundo compreenda que há um ganho social e econômico mundial se o Brasil preserva e conserva o meio ambiente. É preciso avançar para alcançar denominadores em comum. Alguns países já perceberam a importância do conceito ESG e o utilizam inclusive como uma arma de pressão política contra potenciais concorrentes. O Brasil precisa entrar e defender essas agendas de forma coordenada.

Sob a ótica do cidadão comum, dos consumidores, como você acha que esses aspectos ambientais negativos são percebidos?

Os consumidores têm buscado cada vez mais produtos e serviços que realmente tenham preocupações ambientais. É cada dia mais notável o número de empresas que buscam se adaptar a algumas demandas, como a redução da emissão de poluentes ou investindo em materiais recicláveis. Empresas com uma imagem ambiental deteriorada perdem mercado. O consumidor está cada vez mais atento e exigente para questões que transcendem as qualidades físicas do produto ou serviço. Por outro lado, o cidadão ainda é tolerante com a incompetência na gestão pública do meio ambiente. Apesar de ter ganho alguma projeção, o debate ambiental do ponto de vista eleitoral ainda está em segundo plano no Brasil, diferente de outros países, como os EUA, onde os problemas climáticos causados pelo aquecimento global foram um dos destaques no ultimo pleito.

 O investimento e a atividade de saneamento têm um caráter quase sempre despoluidor, a não ser pelos meios que se utilizam até se chegar ao final desse compromisso, por conta de obras e uso intensivo de eletricidade, por exemplo. Quais são hoje os grandes desafios das empresas do setor de saneamento?

As empresas de saneamento precisam dar um passo adiante e transformarem-se em empresas de soluções ambientais. Além de despoluir rios, tratar e fornecer água, coletar e tratar o esgoto, há grande s oportunidade de atuação. Algumas soluções já são conhecidas, como explorar a produção de energia solar com placas flutuantes, explorar pontos turísticos, como por exemplo o que pretende fazer o consórcio que venceu o pregão para administrar a Usina São Paulo, que pertence à Emae (Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A.).

Rio Pinheiros, em São Paulo: investimentos em despoluição e cuidados no entorno | Foto: AE

O que as empresas de saneamento de modo geral podem fazer para serem percebidas de forma mais positiva? Mesmo as grandes, que promovem grandes esforços no sentido de acessibilidade à água, que fazem pesados investimentos, ainda têm muitos problemas em relação à forma como são vistas pela população. São fatores históricos ou conjunturais?

 Investir sempre em melhorar os serviços é o melhor caminho para uma boa imagem. Conforme a resposta anterior. As empresas de saneamento precisam explorar o potencial do produto que têm nas mãos. A incompetência do poder público em fornecer serviços adequados é o principal problema para a imagem de uma empresa de saneamento. Um bom exemplo disso foi o que ocorreu com a Cedae no Rio de Janeiro, quando municípios abastecidos pela empresa tiveram de desaconselhar o consumo de água por problemas de qualidade.

Com a água podemos quase tudo. Do ponto de vista estratégico podemos fazer eletricidade a partir de usinas de vários portes, podemos distribuir para consumo, podemos usufruir como lazer, usar como fonte de atração do turismo. Do ponto de vista do impacto ambiental, de que forma novos investimentos podem dar finalidade mais nobre à água?

A água e o entorno dela podem ser explorados de forma intensa, seja estimulando o transporte fluvial, seja com a criação de parques no entorno dos rios, entre outros projetos. Em São Paulo, por exemplo, há o projeto Novo Pinheiros, que além de ter um ambicioso plano de despoluição do rio, tem também projetos paralelos, como uma ciclovia que tangencia as margens do rio e pode ser considerado um dos cartões postais da cidade de São Paulo. Há também soluções que evitam a necessidade da água percorrer grandes distâncias para chegar ao consumidos final. Como por exemplo os tratamentos para utilização de água de reuso, contribuindo assim para reduzir as perdas e o impacto ambiental.

A água pode tornar-se no futuro próximo uma grande fonte de investimento. De que forma você acredita que isso vá acontecer?

É inegável que a água é um grande ativo. Porém, mais importante que a abundância é o modo como o recurso é administrado. Apesar de possuir uma quantidade grande de recursos hídricos, o Brasil está atrás de países que apresentam condições climáticas adversas e escassez de água. Preservar e adequar o consumo sustentável de água é cada vez mais crucial. Segurança hídrica é um debate que ganha mais importância a cada dia, preservar e melhor a gestão da água é um ativo importante para qualquer país ou empresa, e pelo que estamos observando é um ativo com um potencial grande de valorização.

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