close

Para onde vai a política monetária americana e os riscos para o Brasil

A combinação de juros mais altos e turbulência financeira nos EUA podem levar o país à recessão e prejudicar o crescimento do Brasil

Vista de NY

Não se pode descartar a hipótese de a economia americana passar por um período recessivo, alerta o boletim do Banco Safra | Foto: Getty Images

A pujança da economia americana tem surpreendido os mercados, tendo em vista o recente aperto monetário. Foram criados 1,3 milhão de empregos nos primeiros 6 meses de 2023 e o consumo das famílias vem se mantendo sem queda significativa. As razões para a resiliência da economia americana ainda não são bem entendidas. Muitos fatores podem estar contribuindo para talvez diminuir a potência da política monetária, ou até ir contra essa política, inclusive no campo da comunicação das intenções do Fed.

Dois fatores particularmente interessantes e potencialmente fortes seriam o menor endividamento das famílias e das empresas nesse ciclo e a recente expansão do déficit do governo federal americano, segundo análise dos especialistas do Banco Safra. Confira abaixo porque a combinação de juros mais altos e turbulência financeira nos EUA podem levar o país à recessão e prejudicar a economia brasileira.

Saiba mais

Análise macroeconômica semanal do Safra

Menos endividamento tende a tornar os agentes econômicos menos sensíveis à política monetária, especialmente quando essa menor dívida é em taxas fixas. Um maior gasto do governo tende a neutralizar o aperto monetário, por aumentar os recursos injetados na economia.

Para ilustrar esses fatores, que podem exigir uma taxa de juros mais alta para domar a inflação, apresentamos primeiro a evolução da riqueza e dos ativos das famílias nos últimos anos, especialmente das mais pobres. A riqueza líquida, ou seja, a diferença entre seus ativos e passivos, da metade mais pobre das famílias americanas (dois quartis mais pobres) aumentou em 50% desde o começo da pandemia, já descontada a inflação do período.

Esse crescimento ajudou a puxar aquele da riqueza líquida de 90% das famílias americanas (até o nono decil), que foi de quase 15% no período. Parte do aumento da riqueza líquida da metade mais pobre das famílias americanas tem se dado pelo aumento dos ativos financeiros (5% reais) e pela erosão do valor real das dívidas pela inflação. As hipotecas dessas famílias, por exemplo cresceram apenas 6% acima do CPI desde começos de 2019 e se encontram em níveis historicamente baixos. Se as novas hipotecas tiverem taxas fixas, o pagamento de juros associado a elas também terá caído em valor real desde então.

Na medida em que a riqueza líquida das famílias mais pobres tem se mantido alta e o mercado de trabalho, inclusive a remuneração das atividades de menor salário, continua forte (também pela queda da imigração até recentemente), a demanda por bens e serviços é menos afetada pela política monetária. Como é essa a demanda que influencia o Índice de Preço aos Consumidores (tanto o CPI quanto o PCE usado como referência pelo Fed), o desafio para as autoridades monetárias é grande. A situação contrasta, por exemplo, com a evolução da inflação após a crise de 2008, quando o aumento de liquidez foi direcionado para o setor financeiro, criando uma inflação do preço dos ativos financeiros e reais e não dos bens de consumo.

Na medida em que as empresas estão menos alavancadas, tendo aproveitado as oportunidades de estender suas dívidas até 2025 ou depois com taxas de juros favoráveis, o aumento de juros do banco central também lhes causa menos aflição. Ou seja, grande parte do impacto do aumento de juros estará sendo sentido não pelos grupos cuja maior parte da renda é gasta no consumo, ou pelas empresas que atendem a esse consumo, mas pela classe média alta e a população mais rica, que vê o valor de seus ativos, principalmente financeiros, cair.

O impacto também será mais sentido pelos bancos que não acessaram de maneira mais agressiva as possibilidades de investir em taxas flutuantes no Fed, através das reservas remuneradas e operações compromissadas (reverse repos), essas também accessíveis via Money Market Funds. Aumentos de juros podem, portanto, continuar a ter impacto moderado no consumo, a não ser via uma eventual turbulência no mercado financeiro que diminua a confiança do consumidor.

O segundo fator que pode vir a exigir juros mais altos nos EUA é a tendência da política fiscal. Uma métrica para avaliar essa política é o tamanho do déficit público federal. Um déficit maior indica uma política fiscal mais frouxa que—outras coisas iguais—tende a aumentar a demanda doméstica e as pressões sobre os preços e salários. Usando o tamanho do déficit federal como régua, conclui-se que a política fiscal do governo federal americano, que foi contracionista em 2022, vem sendo relaxada em 2023. O aumento desse déficit se deve em parte à queda de receitas, especialmente do imposto de renda (e ganhos de capital) decorrente da redução dos lucros das famílias com ativos financeiros.

O déficit federal acumulado de outubro de 2022 a maio de 2023 foi $800 bilhões maior do que aquele do mesmo período no ano anterior, ajustado para o adiantamento de certas despesas feitas no final do ano fiscal de 2022. As despesas no atual ano fiscal foram $ 360 bi maiores do que no ano passado, puxadas pelos aumentos de juros ($ 113 bi) e na previdência social ($ 86 bi), e não compensadas pelo fim do subsídio tributário associado a crianças e pela redução das despesas de saúde com a superação da covid. As receitas por seu lado, caíram $ 380 bi, principalmente pela postergação e redução dos pagamentos do imposto de renda de pessoas físicas ($390 bi), assim como a queda da transferência de lucros do Fed (-$80 bi) devido à sua política de remuneração à taxa de mercado dos depósitos feitos na instituição. O aumento em $ 84 bi das contribuições para a previdência e os $ 11 bi no IR das empresas, foi, portanto, muito menor do que a queda de outras receitas. Com isso, o déficit federal deve ficar perto de 6% do PIB em 2023.

A dinâmica da receita e despesa do governo federal aponta para um alargamento significativo do déficit do governo federal nos últimos anos em comparação com a segunda metade da década passada, quando ele se manteve em menos de 4% do PIB (Gráfico 4). A expansão do gasto em 2023 é preocupante, especialmente se considerarmos a reversão da despesa correspondente ao valor presente do perdão das dívidas estudantis (US$ 380 bi), revogado pela Suprema Corte. Descontando esse gasto, o déficit do ano passado estaria abaixo de 4% do PIB, comparando-se com 2018 e indicando uma expansão fiscal de 2 pontos percentuais do PIB em 2023.

As projeções para 2024 também indicam um déficit da ordem de 6% do PIB, puxado em parte pelos programas de investimentos em novas tecnologias e transição energética. Olhando para frente, a carga de juros também se tornará mais pesada—ela já contribuiu com metade do aumento do déficit em 2023 e aumentará de 2024 em diante. As receitas deverão ficar em nível bem menor do que o pico de 2022, quando a arrecadação se beneficiou da tributação dos ganhos de capital com ações, as quais tiveram grande valorização em 2021. Não se esperam grandes saltos no valor dos ativos financeiros das famílias nos próximos trimestres.

O aumento do déficit federal, somado à redução de impostos em muitos estados pode caracterizar um impulso fiscal que explique a exuberância da economia americana. Na nossa avaliação, esse impulso é negativo, especialmente considerando a expansão do déficit primário quando se desconta o gasto com o perdão da dívida dos estudantes em 2022 (é possível que algumas análises de impulso feitas por casas bancárias não descontem o efeito do perdão da dívida dos estudantes).

A explicação da força do PIB por conta do impulso fiscal é menos benigna do que aquela que já identifica ganhos de produtividade como motor do crescimento. Esses ganhos estariam associados à disseminação de novas tecnologias, como a inteligência artificial, que deverá ter impacto importante na demanda por mão de obra menos qualificada—já que a IA consegue reproduzir atividades menos estruturadas típicas do setor de serviços.

A perplexidade com a exuberância da economia parece motivar as recentes indicações de novas altas de juros feitas pelas autoridades monetárias. Juros mais altos, por outro lado, poderão ter efeitos súbitos e imprevistos na atividade econômica, porque irão exacerbar a pressão sobre bancos menores, levando a uma retração mais forte do crédito para as pequenas empresas. Não se pode, assim, descartar a hipótese de a economia americana passar por um período recessivo, não obstante a vitalidade de alguns setores, especialmente aqueles ligados à tecnologia da informação e inteligência artificial, inovação, transição energética e defesa.

A combinação de juros mais altos e alguma turbulência financeira nos EUA que se traduza em uma recessão inesperada naquele país poderá ser prejudicial às perspectivas para o crescimento econômico e de menor volatilidade nos preços de ativos de muitos países em desenvolvimento, inclusive o Brasil.

Um cenário de juros mais altos e atividade subitamente mais fraca nos EUA—e provavelmente na Europa, onde a provável continuação da
subida dos juros e a contração fiscal que se inicia terão efeitos negativos na economia—somada a uma certa atonia na China, pode ser menos favorável ao Brasil, por colocar um piso na taxa de juros doméstica e poder ser acompanhado por uma queda no preço das commodities que impacte o câmbio. Uma política fiscal disciplinada será, portanto, muito importante para o Brasil atravessar 2024 de forma segura e com um crescimento do PIB perto de 2,5%.

Baixe aqui a íntegra da análise macroeconômica semanal dos especialistas do Banco Safra.

Assine o Safra Report, nossa newsletter mensal

Receba gratuitamente em seu email as informações mais relevantes para ajudar a construir seu patrimônio

Invista com os especialistas do Safra